Filho, Trump existe; Papai Noel não
Foi no dia da vitória do Trump, diante de uma rena enfeitada com pisca-alerta. Quer dizer, pisca-pisca. Nove de novembro. Que antes — precisamente 27 anos atrás, pra configurar conhecimento — tinha sido do Muro de Berlim. Da queda do Muro de Berlim. Que um dia foi também do instante em que cheguei na São Vicente, a casa de saúde, coloca aí 41 verões me recuperando do banzo do útero de mamis. E que agora é do segundo em que, pela primeira vez, te ouvi com tristeza falar do Natal.
Quer dizer, você não tava triste. Pelo contrário, você é animado até com São Cosme e Damião. Eu é que fiquei preocupada. Que 6 anos é muito, Bento. E você já tem quase 7. E agora tem o Trump, esse segundo tiro no peito do John Lennon. Essa Disney ocupando o Brooklyn, na contramão das nossas escolas públicas (e viva Ana Julia Ribeiro e seu discurso na Alep, bora assistir geral quem ainda não viu!). Esse deserto sem dramaturgia. Essa desilusão — sem a voz do Paulinho da Viola.
De modo que não posso mais ser conivente, meu amor. Papai Noel é uma figura de linguagem. O amor é uma projeção. O mal existe. Eu não tenho certeza sobre aquele papo de céu. A gente precisa conversar de outro jeito.
Não, não é isso, expliquei mal. Não é figura de linguagem tipo “tô morta de cansaço”, ou “o lego do Pokémon foi pro buraco negro”. É mais tipo uma lenda, uma convenção, uma espécie de combinado, uma mentira institucionalizada que agora me parece nociva e sem sentido, inda mais que a partir do ano que vem você vai pro prédio “dos grandes”. Precisamos de um update, meu tico-tico.
Você contou que vai levar dinheiro pro lanche e que vai ter prova igual ao seu irmão. Disse também que já decidiu que seus filhos vão se chamar Bernardo, se for menino, e Flora, se for menina, e que quer dormir sozinho e tomar banho sozinho, e que vai saber todas as letras do Michael Jackson de cor. Olha a bateria da segunda infância aí, gente! Chora cavaco! Você tá crescendo, Bento. E eu preciso falar a verdade. Dói. Dói meio que até sempre. Seu irmão já sabe. Resolvi avisar porque agora não tem mais Obama, o PT acabou, e até o Toblerone na Inglaterra tá com menos chocolate.
Desculpa, filho. Não foi de caso pensado. Nunca quis te enganar. Tem umas coisas que a gente reproduz sem pensar. Mas, olha, existe o Natal. A gente vai fazer árvore, abrir presente, comer a rabanada de leite condensado da Vanessa e lembrar do aniversário do Cristo. Vão vir os primos, e pode rolar cabana na sala e torta de maçã, sem falar no amigo oculto, quando você mais se diverte. Tem uns caras que ganham um troco fantasiados nos shoppings com aquela roupa vermelha de inverno europeu, e tá tudo certo, porque não tá fácil pra ninguém... Mas esse velhinho fofo, único, atemporal, e pai de todos é puro golpe, filhote, narrativa barata, instrumento de alienação. Papai Noel, Halloween e amor eterno entraram na lista de proibições de 2016, um dia você vai entender o porquê.
Eu sei que no começo vai doer. Eu mesma vou sentir em dobro. Mas uma hora melhora. Com as expectativas mais baixas, a superlua fica dentro, e não aparece só uma vez a cada sei lá quantos anos — e exclusivamente em céus cris-ta-li-nos. Pequenas frustrações são o novo preto, existe amor na ausência de fantasias, bora comemorar o deus das pequenas mudanças, meu Bento. Minhas e suas. Dos nossos.
Eu, por exemplo, nunca pensei que fosse gostar de avião. Nem de avião nem de gato nem de ficar sozinha. Assim mesmo, sem vírgula, porque medo não tem ar pra respirar entre um desespero e outro. Gato, filho, eu achava que era tipo o Flamengo, o time. No sentido de ter que escolher, sabe? De só ter direito a um. Sendo que, à época, minha única identidade estável era ser fluminense. Há três gerações. Sendo eu um ser de cães. Labradores, principalmente. Que com eles me sentia importante. Que com eles não me sentia sozinha. Que com eles tinha algum sentido. Sentido, essa prateleira que não se alcança (que não se alcançava, isso foi antes de você e seu irmão nascerem...).
O avião: primeiro eu não tinha medo porque o meu pai dizia que eu era igual a ele em tudo, e ele não tinha medo — coisa boa não ter que ser por si só. Ser extensão. Depois eu fui virando alguma coisa que não mais exatamente igual a ele mas também ainda não exatamente igual a mim, e aí eu fiquei na dúvida. Eu e meu medo. Nós dois ficamos na dúvida. Mas logo ele decidiu pisar firme, a humildade vem de onde menos se espera. Mas agora eu mudei de assunto completamente e já não sei como cheguei até aqui.
Ah, que eu perdi três medos. Perdi três e ganhei um, da imigração americana. Que na verdade eu já tinha. Que mais? Que eu sei que tá difícil dormir sozinho, eu na real só tô gostando de uns tempos pra cá. Que o vovô e a vovó tão velhinhos. Que a Disney é cafona, bora pro Ceará conhecer o Beach Park. Que eu não vou sair do seu lado, nas partes boas e nas partes chatas. Que Papai Noel não existe, e tem muita criança passando perrengue. E o mais importante: que depois que passa a dor fica muito gostoso mudar.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/antiqueda-de-berlim-20470257#ixzz4QvmZ3mMK
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