Ressaca
Em 1920, o Rio recebia obras por conta da visita de estrangeiros, ou seja, 'para o Rei Alberto ver'
O que cansa não é a História, mas sua repetição errática. Seu andar lento, sua mesmice cega. O que abate não é a memória com seu “eu avisei”, mas sim a sensação de que estamos caindo em um abismo de Alice. Nada muda, mas nada para de ruir. As coisas pioram. Estamos aí, o sol de outono brilha e a cidade permanece cheirando a morte. O país indo pra breca, os laços sociais esgarçados por butins que não são nossos, e uma onda suspende a peça de concreto, ela colapsa por erro e cai, afogando Eduardo e Ronaldo no mar. Não é a História que mata. É justamente a sua falta.
Era setembro de 1920 quando a cidade delirava ao redor de um único tema: a visita do casal real da Bélgica, Rei Alberto I e Rainha Elizabeth. Desde o primeiro momento em que a vinda de sua comitiva ao país foi anunciada, a imprensa local (com dezenas de jornais e revistas) deu ampla e diária cobertura ao tema. Assim como as colunas locais e de costumes eram lidas para saber os passos dos (muitos) preparativos, uma série de chargistas e intelectuais de plantão utilizavam sua verve para criticar o evento. O ponto era muito próximo a nós: todas as reformas eram feitas “para o Rei Alberto ver”. A cidade só mudava por conta da visita dos estrangeiros. Pois é.
Sob a presidência de Epitácio Pessoa e a prefeitura de Carlos Sampaio, o Rio de Janeiro passou o ano se preparando para receber o casal real. Como a cidade era, ao mesmo tempo, Distrito Federal, ganhava ares de recepção nacional. A nova “civilização nos trópicos” poderia provar ao poder europeu seu cosmopolitismo, sua vocação para a beleza e para o refinamento. Ao menos eram esses os apelos coercitivos da imprensa e das autoridades à população.
Os caminhos que as reformas urbanas de Sampaio propunham seguiram o viés iniciado por Pereira Passos nos primeiros anos do século. Ele atravessou governos marcantes e culminou com os seis meses transformadores de Paulo de Frontin (1919). Além disso, eram nomes que representavam a participação dos engenheiros e de suas ideias cientificistas nas formulações e execução das políticas públicas ao redor das radicais reformas urbanas daquele tempo. Muitas vezes, tais diretrizes aplicaram a boa e velha “limpeza”, promovendo remoção de moradias populares, cortiços e favelas, desmontes de morros, descaracterização das memórias locais em bairros atravessados por avenidas etc. São também os anos em que dois eixos desiguais de desenvolvimento foram definidos — um para o sul, outro para o norte. Assistimos hoje à perpetuação disso.
Um ponto impressionante que se aproxima do presente (retirado do excelente livro “A vitrine e o espelho”, de Carlos Kessel) é que, pouco antes de Carlos Sampaio assumir a prefeitura, ela estava quebrada — muito por conta, ainda, das obras iniciadas por Passos, além de dívidas que foram rolando e gastos excessivos com pessoal. Mesmo assim, Carlos Sampaio teve pela frente uma visita de reis europeus, o desmonte de um morro, o aterro de uma praia e a construção dos pavilhões do Centenário.
O atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, de certa forma, ligou-se ao imaginário dessa geração de alcaides transformadores da cidade. Isso se deu a partir de projetos e eventos que estimularam obras urbanas de grande impacto — e transtorno. Ao contrário deles, Paes teve muito mais tempo à frente da cidade (Carlos Sampaio, por exemplo, teve três anos para fazer o que fez — além de muitas outras obras que não cabe aqui citar). Seu legado, certamente, será discutido por historiadores, urbanistas e uma série de pesquisadores (área, aliás, de que a cidade é muito bem servida). Alguns pontos, porém, serão mais lembrados que outros. Talvez o caos das linhas de ônibus — desde a mudança das cores até a confusão absoluta de itinerários, troncais e que tais — seja tão presente na memória do carioca quanto o VLT, quando ele funcionar. Se funcionar.
Certamente a queda de parte da ciclovia na Avenida Niemeyer será lembrada. Talvez ao lado das realizações das Olimpíadas. Uma espécie de adversativa do que ainda virá. Mas sabemos que cariocas têm memória curta com mortes ocorridas no brutal atacado dos dias para os mais pobres. Quanto mais com mortes trágicas de cidadãos que confiaram na estrutura, confiaram na engenharia, confiaram na prefeitura. Não precisavam confiar no mar. Isso era o mínimo que construtores de uma ciclovia como aquela podiam garantir.
A marca que dá o nó no peito é que as mortes ocorreram no ponto acima do viaduto feito justamente por Carlos Sampaio para a vinda dos reis belgas. Ele permanece lá, de pedra, por centenas, talvez milhares de ressacas. E eis a sombra na tragédia: não se aprende com o passado. Há muita pressa, sempre, em nome do capital, da pior política e de um progresso sem saída. A sensação é de que nunca desarmaremos essa armadilha social. Mas, enquanto a cidade se afoga, sua juventude ocupa escolas. Aí, não se trata da História, e sim do futuro. Deveríamos ouvi-lo para não repetirmos os mesmos erros. Nunca mais.
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