Tortura se consuma quando, por discriminação racial ou religiosa, alguém usa violência ou grave ameaça para causar sofrimento
01/10/2017 -
Jaime Mitropoulos, O Globo
Foi uma lufada de encher o peito de esperança. O Brasil respirava novos ares. No cenário então descortinado, a Constituição Cidadã garantiu ser inviolável a liberdade de consciência e livre o exercício de crenças.
Mas é hora de saber se o Brasil pretende construir uma sociedade livre, justa, solidária e plural, pois as coisas enveredaram por caminhos muito sinistros.
A sombra do retrocesso paira sobre nós. Além de ataques contra casas religiosas, pessoas sob a mira de armas são forçadas a renegar sua fé, o que nos remete à implacável perseguição contra os cristãos. Exemplo desse suplício vem do próprio São Sebastião, padroeiro que, com o corpo flechado, empresta seu nome à torturada cidade do Rio de Janeiro.
Os ataques de ódio determinados pelo fundamentalismo religioso continuam recorrentes. Lembremos o episódio da menina apedrejada porque usava roupas brancas de sua religião, o que escancara o abjeto motivo da ação criminosa. Injúrias, depredações, incêndios. A sistemática evidencia que não se trata de mera coincidência.
A coação a sacerdotes e adeptos das religiões de matriz afro-brasileira pode caracterizar crimes gravíssimos.
Nesse sentido, o crime de tortura se consuma quando, por motivos de discriminação racial ou religiosa, alguém usa violência ou grave ameaça para causar sofrimento físico ou mental à pessoa. A pena para o crime hediondo chega a oito anos.
Por outro lado, configura ato de terrorismo atentar contra a vida ou a integridade física por razões de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, expondo a perigo pessoa, patrimônio ou incolumidade pública, com a finalidade de provocar terror social. A pena de até 30 anos de prisão pode ser aumentada se houver lesão corporal grave ou morte.
Terrorismo, vale lembrar, é crime de competência federal.
O direito de exercer a própria fé não exime de responsabilidade quem promove a violência. Com efeito, não existe salvo-conduto para disseminar o ódio, pois tais comportamentos invariavelmente incitam ainda mais ódio e geram pessoas cada vez mais intolerantes.
Vivemos a Década do Afrodescendente.
Instituída pela ONU, a efeméride tem o objetivo de buscar o reconhecimento e a Justiça. E o Brasil tem obrigação de adotar providências efetivas para combater a crescente discriminação e a intolerância religiosa.
Em caso de omissão, o Estado pode ser acionado nas Cortes Internacionais.
Se a Constituição não é feita de promessas vazias, é preciso adotar medidas frente à triste realidade que nos espreita, açoita e ameaça nossa democracia.
Não desejamos viver sob qualquer regime teocrático e nem precisamos de novas ditaduras ou inquisições. Até porque São Sebastião do Rio de Janeiro, hoje com o corpo cravejado de balas, está cansado de terror e de tortura.
Jaime Mitropoulos é procurador da República no Ministério Público Federal no Rio de Janeiro
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