terça-feira, 17 de outubro de 2017

Você sabia disso ? - Fanáticos, e até traficantes, alimentam Intolerância Religiosa

Agência O Globo

RIO - Era um noite de domingo quando a corretora de imóveis Karla Tavares postou em um grupo de adoção de animais no Facebook: "Boa noite, amigos! Estou à procura de um gato preto para adoção, ou branquinho". Ela e o marido haviam acabado de perder um cão de estimação e decidiram preencher o vazio, levando para casa outro animal. Em um papo de casal, ficou a dúvida: qual deveria ser a cor do novo integrante da família?


Na manhã seguinte à postagem, Karla recebeu o alerta de amigos: o seu pedido na rede social e sua foto estavam circulando nas redes acompanhados de comentários ameaçadores e de xingamentos como "monstra". Moradora de Duque de Caxias, Karla é seguidora do candomblé, o que nunca escondeu de seus seguidos no perfil. Ela foi acusada de tentar esconder, sob o pretexto de adotar um gato, a intenção de sacrificar animais em rituais de "magia negra". Karla ficou em pânico com a proporção que o caso ganhou. O episódio foi parar numa delegacia. Karla é uma das vítimas de uma onda de intolerância religiosa que vem chamando a atenção.

Mas, assim como não há tipificação para essa ocorrência, o que sempre dificulta o registro policial, também não há estatísticas confiáveis para saber se houve um aumento desse tipo de crime. Há pouco mais de dois meses, a Secretaria estadual de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos começou a compilar e a mapear as denúncias: de 15 de julho a 15 de setembro deste ano, o órgão já recebeu 39 relatos.

BAIXADA LIDERA DENÚNCIAS

Do total, 35 são referentes a religiões afro-brasileiras - candomblé e umbanda. A Baixada lidera com 12 denúncias (dez em Nova Iguaçu, uma em Caxias e outra em Mesquita). A Zona Sul do Rio concentra seis casos, incluindo o do sírio, vendedor de esfirras, atacado em Copacabana.

- Eu fiz a postagem dizendo que queria adotar um gatinho preto ou branco. No outro dia, meu Facebook estava bombando com agressões e gente falando em magia negra. As pessoas pediam para que minha foto fosse compartilhada, e que eu fosse impedida de adotar o animal. Fiquei assustada, chorando igual a uma criança. Mas fui abrir ocorrência na delegacia - conta Karla, que, traumatizada, por enquanto desistiu de ter um gato. - Fizeram montagens com as minhas fotos, eram mais de 300 posts. Uma pessoa chegou a me pedir desculpas, por mensagem privada, admitindo que tinha sido intolerante.

Mesmo com medo, Karla preferiu reagir e não se esconder. A polícia tem em mãos os nomes de cinco pessoas envolvidas no crime.

- Acho que são pessoas loucas que fazem isso. Só porque citei as cores. Fiquei com receio de sair à rua, mas não podemos nos esconder. Às sextas, eu uso branco, sem medo - comenta a vítima.

Especialistas contam que, geralmente, os criminosos são falsos religiosos ou fanáticos. Quando esses se misturam a traficantes, o resultado pode ser ainda mais explosivo. Bandidos chegaram a publicar na internet vídeos com ataques a terreiros na Baixada. O secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Alexandre Nunes, diz acreditar que hoje os canais de denúncia e os movimentos da sociedade civil - há uma semana, houve uma passeata em Copacabana contra a intolerância - têm dado mais visibilidade aos crimes.

Em agosto, o órgão colocou no ar o Disque Combate ao Preconceito (2334-9551).

- Sempre houve casos de intolerância religiosa, mas também muita subnotificação. Essa é uma das frentes que trabalhamos para combater. Muitas vezes, a vítima não percebe que aquela queixa terá desdobramento, e se sente desestimulada. Há uma porcentagem também de casos mais sérios, em que as pessoas têm medo. Os terreiros, principalmente, passam por isso, porque têm endereço fixo e ficam mais expostos - diz o secretário.

Entre as denúncias recebidas pelo órgão nesses dois meses, estão casos de discriminação e difamação; invasão e atentado a instituições religiosas; agressão física; agressão verbal; incitação ao ódio; e ameaça.

ESTADO DEVE GANHAR DELEGACIA ESPECIALIZADA

O secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Nunes, afirma que até o fim do ano deve ser colocada em prática pelo estado a proposta da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). A unidade deverá funcionar em conjunto com as delegacias regionais, que também deverão contar, cada uma, com um agente treinado no assunto. Os casos mais graves seriam investigados pela Decradi. Outra medida em estudo, prevista para ser adotada até o fim de 2017, é a classificação do crime de preconceito nos registros policiais, incluindo intolerância religiosa.

Das denúncias recebidas pela secretaria recentemente, além das 35 referentes às religiões afro-brasileiras, duas são ligadas a preconceito contra seguidores do islamismo, uma foi feita por espírita kardecista e, a última, por evangélico.

Átila Nunes acrescenta que as redes sociais acabam se tornando espaço para o discurso de ódio. E cita o boom de relatos que chegam ao Disque 100, canal mantido pelo Ministério dos Direitos Humanos: o secretário diz que, em 2011, foram recebidas 15 denúncias de intolerância religiosa pelo telefone do canal e, no ano passado, este total pulou para 756.

- Há um crescente discurso de ódio religioso, é um fenômeno muito claro. O mundo passa por um momento de intolerância. No Brasil e no Rio, não é diferente. Se diz que o brasileiro é um povo ótimo, que sabe conviver, mas não é mais assim, infelizmente - observa Nunes. - Entendo que existem falsos religiosos que se aproveitam de determinados segmentos. Não é à toa que uma das pessoas autuadas recentemente foi um religioso fundamentalista. Para mim, essas pessoas não seguem princípios cristãos.

Este mês, um pastor evangélico de Nova Iguaçu foi autuado por discriminação religiosa após publicar na internet um vídeo em que quebra imagens de divindades afro-brasileiras, chamadas por ele de "demônios". O babalaô Ivanir dos Santos, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio, critica a falta de mecanismos do estado para combater o discurso de ódio. Ele cita o caso do grupo que espalha pelos muros a mensagem "Bíblia, sim; Constituição, não".

- Há uma inércia do poder público nos últimos anos. Não há condenados na Justiça por intolerância religiosa, o que gera a sensação de impunidade. Quando o discurso de ódio é vitorioso de alguma forma, essas pessoas encontram espaço para se manifestar. Nos EUA, vemos a Ku Klux Klan agir, depois da eleição do Donald Trump.

'VOLTAMOS À SENZALA', DIZ MÃE DE SANTO ATACADA

Uma mãe de santo de Nova Iguaçu, de 66 anos, viveu momentos de terror no último dia 5. Ela teve o espaço onde recebia religiosos do candomblé atacado por um grupo armado e foi obrigada pelos criminosos a destruir, com as próprias mãos, as peças do terreiro. Apavorada, não quis prestar queixa na polícia, e só falou sobre o caso sob a condição de anonimato.

Ela foi rendida quando chegava do supermercado. Sete homens, munidos de pedaços de pau, barras de ferro e uma pistola, a abordaram em frente ao local, quando a religiosa saltava de carro do Uber. Após obrigá-la a entrar na casa, os bandidos passaram a filmar a invasão e a ofendê-la. Eles publicaram o vídeo na internet. A mãe de santo relata que muitos dos que viram as imagens pensaram que ela fosse uma evangélica quebrando objetos sagrados ao candomblé.

- Muitos comentaram, diziam que eu era o satanás. O que aconteceu é um desrespeito à nossa cultura, o que me deixou muito constrangida. Estou com muito medo, tentando retirar o que sobrou na casa e levar para outro endereço. O que mais quero agora é abafar isso - ressalta a mãe de santo, descrente de qualquer punição para os criminosos. - Eles diziam: "Não queremos casa de religião". Mas há várias igrejas evangélicas funcionando normalmente ali perto. O que leva essas pessoas a fazerem isso é a certeza da impunidade. Não temos a quem gritar, voltamos à senzala.

- Em um dos ataques, eu estava em atendimento. Jogaram na casa uma bomba caseira com muitos pregos. Quase que meu filho e minha secretária morrem - conta o mago Ubirajara Pinheiro, que, em outro ataque, teve o portão do centro incendiado. - Tive que reforçar a segurança com dois vigias. Já tínhamos um circuito interno de câmeras.

Pastor da Igreja Batista Betânia de Sulacap, Neil Barreto, que já presenciou uma jovem vestida de branco e turbante ser alvo de deboche na rua, faz um diagnóstico:

- O problema é a ignorância. A maioria dos líderes religiosos não está preparada para ensinar a viver com respeito, solidariedade e bondade. Hoje, pode existir uma geração sincera na sua fé, mas que não é informada

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