O século XX não foi o século dos historiadores. O prestígio que a História gozou durante os últimos três mil anos foi eclipsado, no século XX, por uma série de ramos do saber que se diziam detentores de fórmulas para prever o futuro. Até o XIX, o homem olhava para o passado para entender-se, para se referenciar e os historiadores ocupavam – ora com religiosos, ora com filósofos – os postos de “conselheiros” (formais ou informais) do poder político. No século XX, a História foi entendida como “não boa o suficiente”, sendo substituída pela economia, ciência política, relações internacionais, publicidade e outros tantos ramos do saber que prometiam “resultados concretos”, ou ao menos a concretude através de um cientificismo matemático.
Índices de crescimento econômico, índices de agregação ou dispersão partidária, índices de correlações de forças materiais e projeções de futuro … Números, gráficos, projeções, probabilidades. A certeza da matemática esquadrinhando o homem, seu tempo, suas ações. A Teoria dos Jogos e a incerteza deixa de ser incerta. Algoritmos jogados em computadores a “preverem” os resultados das escolhas de milhões de pessoas ao redor do globo. Não há necessidade de entender as especificidades. Russos, Angolanos e Peruanos agem da mesma forma. Querem seu sustento material, querem manter-se em paz e livres, seja lá o que isto quer dizer. O mundo parecia simples, alguns até se vangloriavam do “fim da história”.
Os eventuais erros eram fruto de uma métrica imperfeita ou do uso imperfeito (humano?) das metodologias disponíveis. Não importa o quanto o trigo cresce ou qual o significado deste crescimento para a crença dos cem moradores da região. Interessa que dada a pressão internacional da redução do consumo chinês isto pode ser traduzido em um índice com a consequente redução do preço da commodity no mercado mundial. Por algum malabarismo nos índices, o país que tem mais de oito mil ogivas nucleares é menos perigoso do que aquele que tem apenas (no máximo) 8.
Eleições não são mais um respaldo para a democracia, é preciso a aderência a códigos de conduta, espaços quantificáveis de participação, oposição, institucionalização e tantos outros. Até a liberdade ganhou números, índices. Deixou de ser algo que “não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” para ser um número baseado numa recoleção não bem explicada de outros índices, supostamente todos livres. Felicidade, engajamento, participação, sucesso pessoal, saúde … tudo e qualquer coisa se torna o espaço para a certeza aritmética ou a probabilística.
Cultura, mentalidades, narrativas de subjetivação, pertencimento, memória, percepção de futuro, esquecimento, formação de identidade, espaço de subjetivação, discursos nacionais, legitimidade … todos conceitos bonitos, mas não bons o suficiente para os tomadores de decisão do século XX. Cada um deles demanda um sem número de leituras e reflexões, algo impensado na velocidade do mundo atual. Tempo, afinal, é dinheiro. Gráficos e computadores, é disto que o século XX se trata. Objetividade, demanda e lucro. O que traz dúvida está errado, inacabado ou imperfeito.
Pois se querem números: no dia 12/08/2017, em Charlottesville, nos EUA, cerca de 7000 pessoas entraram em batalha campal terminando com 19 feridos, 3 mortos e 4 pessoas presas. A cidade de Charlottesville tem uma população de cerca de 47 mil pessoas e um PIB per capita de 47 mil dólares. 19% desta população é negra. Durante o protesto, a polícia calcula que quase 50% dos que marcharam em direção ao campus da Universidade de Virgínia eram de fora da cidade.
E nenhum destes números ajudam a entender o que está acontecendo lá.
Tragam os historiadores de volta. Os historiadores podem dizer o que está acontecendo, como já aconteceu e como estamos caminhando para um futuro em que Charlottesville não será notícia. Será comum.
Olhem para o Brasil. Charlottesville está acontecendo aqui desde 2013. Embaixo dos nossos narizes, enquanto uns se preocupam com a inflação, com o crescimento econômico ou com a Venezuela e a Coréia do Norte.
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