Claro que não se tratava de mágoa de amor romântico, como na canção. Era mágoa de amor cívico por um país sonhado
Como é bom poder tocar um instrumento, diz Caetano, no último verso de “Tigresa”, quando o sujeito da canção, magoado de amor, corre ao violão num lamento. E, diante da manhã que nasce azul, encontra forças e alento no dedilhar de suas cordas. A pungência da estrofe me voltou à memória várias vezes desde quarta-feira, data em que Lauro Jardim, neste jornal, antecipou os diálogos gravados por Joesley Batista, com Michel Temer e Aécio Neves.
Corri para o conforto do piano. Claro que não se tratava de mágoa de amor romântico, como na canção. Era mágoa de amor cívico por um país sonhado. Não que houvesse uma desilusão, nem qualquer amor pregresso, como eleitor e contribuinte, pelo presidente ou pelo senador. Temer jamais me decepcionou, pelo simples fato de que jamais esperei dele qualquer grandeza.
Ora, em sua equipe figuravam e ainda figuram alguns dos personagens mais nefastos da República. Seus articuladores são cartas marcadas e fichas corridas da sangria nacional. Despreza a cultura, do alto de seu beletrismo. Faz vista grossa a toda sorte de desmando, por mais colossal.
Agora anistiado, o grito de “Fora Temer” foi, nesta semana, bradado por vozes de todas as cores, ideológicas ou neutras. Até o fechamento deste texto, sexta-feira, fim de tarde, ele ainda não caiu. Antes da quarta-feira fatal, contudo, tal slogan soava, para muitos, como pinimba de petistas ainda inconformados com o impeachment de Dilma, ou antipatriotismo diante das reformas.
Mas, para outros era só o medo das pautas defendidas pelo presidente. Temer, já se sabia, comprometeu-se com a bancada da bala (por decreto, vem legislando...), com os caçadores de índios, com os desmatadores, com os homófobos, com toda agenda retrógrada. Recentemente, declarou que o povo não quer saber do modo com que se alcança a recuperação econômica. Os fins justificam os meios. Será que o povo pensa mesmo assim? Temer, é certo, pensa.
Quanto a Aécio, houve até um tempo, já remoto, em que, por abissal ingenuidade, me pareceu haver, em sua figura, certa dignidade, ainda que tresloucada. Mas não demorou muito a ficar claro o quanto ele estava afundado até o pescoço nos círculos mais baixos do inferno. Agora, desponta, com grande desfaçatez, o entusiasmo vulgar e chulo com que luta por seus interesses e contra qualquer transparência.
Mas não fica nisso. O instrumento vem me servindo de refúgio diante de uma longa série de devastações. Pois o Brasil vem sendo generoso no desmonte espontâneo de biografias, não importando muito o que homens e mulheres públicos legaram de bom em suas trajetórias.
Lula, recordista em deixar órfãos de confiança os contingentes da própria esquerda (para além do ódio dos adversários tradicionais), perdeu a maior oportunidade da História da República de fazer tudo certo e, por fim, estragou aquilo que conseguiu construir de positivo. De Dilma nem se fala: noves fora qualquer boa intenção, sua inépcia sempre esteve na cara, nas palavras, na falta de tato, na omissão. E o que vem por aí só tende a agravar tais percepções.
Mas, no piano, parece que tudo se dilui num mar pantanoso e distante, e me vejo protegido, plantado numa doce barricada, alerta tão somente à emoção fustigada por melodias, acordes, contrapontos e modulações.
Sempre quis acreditar que os homens e mulheres públicos tentam, com toda a fibra, resistir à tentação. Pelo menos uma parte considerável deles e delas. A evidência de que esse contingente é bem menor do que se gostaria; e a impressão de que, por aqui, se não também alhures, a maioria acaba caindo nas garras do corruptor, quando não está na própria pele do mesmo: eis uma constatação que dói fundo no peito.
Pois, no fim das contas, é de seres humanos que se fala, esquecido de que, como ensinou Hannah Arendt, o mal é, sempre, banal, e sua corrente se dissemina com maior facilidade do que a incômoda corredeira do bem. Isto considerando-se, ainda, a validade desses dois conceitos em algum cruzamento do gráfico da complexidade da espécie.
E a gente vai se iludindo. E a gente vai levando. Piano. Pianinho.
Tenho ouvido risos de escárnio de muitos amigos e amigas quando revelo minha surpresa ao ler que José Serra, “até ele”, é acusado de ter recebido propina depositada em contas no exterior. A mim, Serra se afigurava um político sem carisma, grosseiro, autoritário, truculento diante do contradito. Mas acreditava realmente que era um homem honesto, com uma pauta, lá no fundo, progressista e combativa.
E agora, José, é só no piano que acalmo o vexame de ter sido, assim, engabelado em meus bons sentimentos, e sigo o pentagrama da partitura como se me agarrasse à fiação de uma avenida sem saída. Até que a música, só ela, conduza meu pesar na direção das esferas que sublimam toda palavra.
Pois no piano, mesmo que esteja chovendo, como chove, no exato momento, lá fora, sempre nasce, nos sentidos, azul, uma manhã.
E repito o verso: “Como é bom...”.
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stest
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