Nem Marx nem santo Antônio conseguiriam solucionar as enormes expectativas criadas pela indústria do amor
Uma curandeira mineira foi processada por uma cliente insatisfeita com seus serviços. Levada ao tribunal, a Justiça considerou improcedente a reclamação. A inusitada profissional oferece em faixas trazer de volta o seu amor. Cobra R$ 10 mil por execução.
Foi o que ela mais uma vez fez. Ao que parece, é alguém respeitada nesse departamento de resgate amoroso: trouxe de volta o desprotegido pagão em cinco exatos dias. Ocorre que a contratante exigia o capturado mais manso, bovino e de cabeça baixa. Ele retornou ao lar, sim, mas indomável. Um diabo, no relato incorporado ao processo.
A megera (desculpe, Maria), impossibilitada de responsabilizar os astros e os deuses, processou a curandeira. Perdeu na primeira instância. Meu herói Richard Burton, por quem ainda hoje cultivo renitente inveja, poderia ser nomeado como o culpado de sempre. Na década de 1880 traduziu para o inglês as histórias de “As mil e uma noites”. Sátiro com fleuma, encheu de notas de rodapé o relato persa e deu destaque exagerado às estripulias de Eros, deus de amor grego. Seria uma das raízes do maléfico amor romântico.
A aristocracia holandesa contemporânea de Vermeer e Frans Hals também fez sua contribuição ao cadafalso, quando transformou a esposa em companheira, amante e confidente. Até então, esses eram departamentos separados. Não se pensava em fazer sexo selvagem com sua senhora, tá louco. Afinal, os casamentos eram arranjados para atender interesses de poder e sucessão. Você não se apaixonava pela sua esposa. Para isso, existia a amante.
Burton por certo não poderia imaginar que sua contribuição ao mundo ocidental pudesse dar em Peppino di Capri e Djavan — autor da pérola “o amor é azulzinho”. O explorador que buscou a nascente do Nilo, enfrentou tribos hostis africanas, navegou pela Amazônia (seus dois volumes com o registro de suas viagens pela região me inspiraram a escrever meu “Trilha nos trópicos”, Maria) e foi cônsul em Santos, se encontra na base da indústria que vive às custas de explorar o amor romântico.
Os poetas românticos, em geral chatos idealistas, a seguir contribuíram com os exageros como morrer por amor, a melancolia excessiva trazida pela paixão fugidia, o desencanto com a vida sem a amada.
Como Marx, acredito que o capitalismo seja criativo porque soube transformar o amor romântico numa mercadoria de valor tangível. Pela mão da publicidade e do cinema, forjou-se no mundo ocidental um tipo de comportamento hoje responsável por tamanha infelicidade, sucessão de desencontros e coisas como os resorts e o muxoxo Xuxuzinho.
Os crédulos na existência de uma alma gêmea sacrificam suas vidas numa busca desavergonhada, permeada de má literatura, música brega e frases feitas, e se consolam quando percebem que os deuses também falham, como mostra o recente desenlace midiático de Angelina Jolie e Brad Pitt.
Nem Marx nem santo Antônio seriam hoje capazes de solucionar a montanha de expectativas criadas pela indústria do amor. Simplesmente pelo fato de ser quase impossível alguém suprir os quesitos ditos imprescindíveis de amizade, sexo, compreensão, humor, companheirismo e solidariedade.
Sobra para santo Antônio e para curandeira mineira.
Logo a coisa acaba no Supremo.
O estupendo historiador Roman Krznaric lembra que os gregos antigos listavam vários tipos de amor. Quis a ignorância e a simplificação dos tempos modernos juntar todos nas costas de uma única pessoa — a tal alma gêmea.
Eram mais complexos os arranjos, assim como o são os seres humanos. Imagine que o próprio Homero colocou Polifemo dizendo à sua Galateia: “Ó, és mais branca aos meus olhos do que leite coalhado... Mais lustrosa que uma uva verde”. Ao que eu me lembre, ela não caiu nessa conversa fiada.
A agenda contemporânea coloca várias tarefas na lousa. Ir à Disney com os filhos, ser bem-sucedido, participar das obrigações caseiras, frequentar a academia e deixar o último pedaço do pudim para o seu amor. Não há santo que resista.
Krznaric fala da necessidade de se repensar o amor. É bem provável que a geração digital aos poucos esteja dando uma resposta aos ditames do mercado — sim, como Marx, penso que nesse caso sejamos escravos das leis de oferta e procura.
Pesquisas recentes em várias capitais indicam que a garotada deixou de desejar objetos de consumo e de comportamento herdados à geração de nossos avós. Não querem ter carro (portanto, não dirigem), não querem casar (filhos: esperem para nascer) e não querem comprar casa (ao contrário de Lula).
Outros estudos constatam a frivolidade das relações. Você não namora, você fica. Os céticos falam em falta de compromisso, na fluidez dos arranjos. Besteira. O amor é um fato cultural. Numa levada só, a geração digital derrubou as indústrias da construção, do automóvel e do amor romântico.
Por isso, Maria, a repercussão de “Paterson”, que exalta os diversos tipos de amor.
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stest
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