A frase dá nome a documentário que reequilibra o lugar de vozes e regiões no debate da educação no Brasil
“Nunca me sonharam” é uma frase dita no meio do filme por um jovem estudante de uma escola pública da cidade de Nova Olinda, interior do Ceará. A frase é tão desconcertante que dá nome ao documentário. Uma outra jovem, sentada na escada de uma escola da periferia de São Paulo, indaga se sobrará algo da sociedade para a sua geração. São pensamentos de jovens que não costumamos ver nesse lugar de reflexão em filmes, matérias e reportagens quando o assunto é educação. Jovens que vivem a realidade da rede pública brasileira, que corresponde a 85% de todo o ensino brasileiro. O diretor Cacau Rhoden faz um filme que, além de falar de históricos problemas e boas práticas, reequilibra o lugar de vozes e regiões no debate da educação.
Além de trazer o pensamento de jovens alunos do ensino médio de diversas partes do país, o documentário coloca educadores e educadoras negras, por exemplo, em lugar central de formulação sobre as questões que o filme persegue. Macaé Evaristo, que tem um respeitado histórico como gestora, é contundente ao apontar que a educação não pode estar desassociada das questões éticas que assolam o país. Não poderá existir uma educação menos desigual sem enfrentar o racismo. Essa presença de jovens educadores negros e de experiências de diversas regiões do país, misturadas em equilíbrio de reflexão com outros intelectuais que já deram contribuições importantes para a educação no Brasil, é um dos gestos de real comprometimento do filme com o mundo que interage.
“Nunca me sonharam” é um manifesto sobre a educação em que o texto ganha diversas vozes carregadas de pensamentos, e não apenas de denúncias, como forma de abordar as desigualdades. E o melhor: a fala dos personagens jovens no filme está do tamanho que eles são, respeitando o momento da vida deles. O documentário tem jovens falando sem imitar discursos prontos. Com sinceras e reflexivas vozes, expressam desejos, percepções, conflitos, desafios e uma forte consciência da necessidade de pensar sua trajetória de vida. É certo que, pela centralidade em depoimentos, o doc pode envolver mais quem vive ou se interessa pela questão da educação no cotidiano. Isso por si só já seria uma qualidade, pela capacidade de orquestrar um discurso que produza sentido ao conjunto de pessoas que participam da luta pela educação de qualidade no país. Mas o filme, por sua intimidade e cumplicidade com os entrevistados, nos aproxima da questão abordada através de seus personagens.
No voo panorâmico sobre diversas escolas de estados e paisagens do país, desloca positivamente nosso olhar. Passa por experiências bem-sucedidas que nasceram diante dos desafios. Estão lá histórias que já conhecemos: o professor da escola pública que pegou garotos com desempenho escolar ruim, acreditou neles e usou como estratégia de mobilização a formação de um time de futebol; a escola do interior do Piauí, em uma região de baixo IDH, que coleciona medalhas das olimpíadas de matemática; o educador que, por falta de recursos e laboratórios, usa o próprio prédio escolar para ensinar geometria; e também o tocante depoimento de um jovem que recebeu uma carta assinada por professores e amigos de turma quando abandonou a escola. Foi essa carta, como confessa, decisiva para sua volta. O filme poderia aprofundar-se nessas experiências com as quais se relaciona, mas esse seria um outro filme.
A educação cabe em diversas bocas. Nos discursos que a percebem como um lugar de instrumentalizar pessoas para o mundo da forma que ele é, até naqueles que se engajam em mudar o mundo através dela. Sempre tem alguém falando sobre educação. Todos nós nos sentimos capazes de opinar sobre o tema. O que é certo, pois ela é uma das esferas mais decisivas para nossos projetos de vida individuais e coletivos. Porém, é preciso escutar com mais atenção todos que vivem o cotidiano da educação. O filme e sua estratégia de exibição contribuem para isso.
Como não consegui falar com Felipe Lima, personagem e autor da frase que nomeia o filme, após o debate de que participei em São Paulo na semana passada, termino essa coluna escrevendo pra ele: Felipe, sua frase “nunca me sonharam” é uma das falas mais políticas e poéticas na história da relação entre educação e audiovisual de nosso país. Você acertou em cheio. O Brasil ainda não está à altura de seus jovens de origem popular. Já até existiram algumas mudanças, mas nunca ele foi sonhado do tamanho que pode ser. Fiquei pensando muito em sua história e no paralelo dela com a minha. No final do debate desejei conversar, mas você foi abordado por outras pessoas. Queria dizer que se nunca te sonharam, teu sonho é livre, sonhe você e o Brasil. O país precisa de novos personagens com outros sonhos. Não desista!
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“Nunca me sonharam”, idealizado por Ricardo Henriques e Thiago Borba, é uma iniciativa do Instituto Unibanco, com produção da Maria Farinha Filmes. Estreia em 8 de junho nos cinemas do Rio e de SP. Entre 8 e 11, tem ingressos gratuitos. E poderá ser baixado pela plataforma Videocamp para exibições públicas.
Leia mais: https://oglobo.globo.com/cultura/nunca-me-sonharam-21409837#ixzz4j2D7NkOM
stest
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