Educação ocidental ajudou a subjugar os povos africanos colonizados pela Europa, mas tornou-se ferramenta para sua libertação
Marina de Mello e Souza
É um lugar comum, mas muito verdadeiro, dizer que saber é poder. A habilidade de construir conhecimento sobre a própria existência e tudo que a cerca é exclusiva do ser humano. Memória, observação e experiência. Letramento, leitura e reflexão. Divinização ou laicização dos saberes. A diversidade de formas pelas quais ele é transmitido é tão grande quanto a diversidade de sociedades. E educar é mais do que promover a incorporação de informações sobre determinados assuntos: define também comportamentos, sensibilidades, formas de relacionamento com o entorno e com as pessoas. Quando dois grupos sociais entram em contato, seja por circunstâncias pacíficas ou belicosas, vêm à tona suas diferenças culturais e educacionais.
Ao estudarmos a história da África mais recuada no tempo, disciplina caracterizada pela escassez das fontes, um assunto recorrente é o da movimentação de grupos humanos. Crescimento populacional, busca de novas terras das quais tirar o sustento, secas, disputas políticas pelos lugares de poder, guerras de expansão, formas de comércio implicavam relações com outros grupos sociais em termos de igualdade, ou em situações de subordinação ou de domínio. Desses encontros resultaram formas diferentes de cada um lidar com a cultura do outro.
Muitas vezes o povo que conquistava um território e subjugava seus moradores tratava de incorporar às suas próprias maneiras de ser não só as gentes, mas também os saberes que elas tinham, pois assim a adaptação ao novo ambiente seria facilitada. Eram os antigos moradores que sabiam se relacionar com as entidades espirituais responsáveis pela fertilidade dos campos e das mulheres, eram eles os conhecedores dos ritos que abriam as portas da comunicação entre o mundo visível, no qual viviam as pessoas, e o invisível, de onde ancestrais, antepassados e espíritos da natureza intercediam nas coisas da vida. Nessa maneira de organizar o conhecimento, a palavra tem uma carga divina, podendo ser veículo dessa comunicação e, por isso mesmo, devendo ser tratada com um respeito excepcional. Aquele que se dedica a armazenar o conhecimento, seja de que ordem ele for, e transmiti-lo pela palavra – o veículo de comunicação principal das sociedades não letradas – tem um compromisso radical com a verdade.
Essa forma de lidar com o conhecimento e sua transmissão é completamente diferente de outra, inserida em um sistema institucionalizado de ensino, baseado na leitura e na escrita. Neste caso, os saberes acumulados costumam estar dissociados da experiência prática cotidiana das pessoas, ou seja, tem uma natureza mais abstrata. Nela há a intensificação do desenvolvimento da técnica, da racionalidade, das ciências que permitem que a espécie humana alcance realizações cada vez mais elaboradas. É o que chamamos de desenvolvimento: a capacidade de produção de bens materiais e imateriais de complexidade crescente e que ampliam as potencialidades humanas. Esse padrão de educação teve a Europa como centro irradiador e se espalhou por boa parte do mundo. Foi imposto também aos povos do continente africano.
No que diz respeito às relações entre sociedades africanas e sociedades europeias, a educação teve importância central no processo de subordinação de algumas regiões da África a partir do início do século XIX. Com o caminho aberto pelas viagens de exploração do interior do continente e pelo aumento dos interesses econômicos nos seus recursos naturais, primeiro os missionários cristãos, depois professores leigos tornaram-se importantes intermediários dos europeus e transmissores de valores e conhecimentos tidos como superiores aos dos nativos.
Esses estrangeiros disseminaram as formas de conhecimento ocidental entre os africanos em um contexto no qual os saberes locais eram menosprezados, quando não desqualificados. O modelo de civilização ocidental era visto como o mais adiantado e o empenho em educar populações nativas transmitindo conhecimentos que lhes eram estranhos até então era entendido como um ato de generosidade. Os interesses políticos e materiais que sustentavam essa ação entendida como civilizatória não eram explicitados, mas nem por isso deixavam de ser evidentes. Ao lado da introdução da educação ocidental nas línguas do colonizador e da valorização das culturas europeias, havia o empenho em interromper os fluxos de transmissão dos conhecimentos segundo as normas locais e em desvalorizá-los.
Por outro lado, os agentes dos poderes europeus, no processo de controle de grandes áreas do continente africano, buscavam conhecer, além das potencialidades econômicas, as maneiras de viver e pensar das populações africanas, de forma a saber qual a melhor maneira de controlá-las e de impor a elas sua própria maneira de ser. Portanto, ao mesmo tempo em que agiam no sentido de interromper as cadeias de transmissão do conhecimento que seguiam as lógicas das sociedades locais, buscavam entendê-las, o que ajudaria na tarefa de controle e exploração. Nesse sentido, muitos administradores coloniais tornaram-se estudiosos de sociedades africanas e elaboraram minuciosos relatórios, exigidos pela sua atividade profissional. Mas nem por isso deixaram de ver as sociedades que estudavam como inferiores, atrasadas em relação às ocidentais, nas quais a ciência, o conhecimento racional, o desenvolvimento da técnica impulsionavam descobertas que permitiam o aprimorando das condições de vida dos homens e dos grupos dominantes.
A educação de crianças e jovens nas escolas coloniais, as de primeiras letras geralmente de missionários cristãos, provocou uma transformação radical que alterou as relações sociais e econômicas em torno das quais as sociedades se organizavam, mas também, mais tarde, contribuiu para a luta contra a opressão colonial, concentrada principalmente nas regiões mais urbanizadas e ocidentalizadas. Assim, por um lado, o conhecimento sobre as sociedades africanas desvendou para o mundo ocidental maneiras diferentes de viver e pensar e forneceu instrumentos para uma exploração econômica e um controle político mais eficientes. Mas, por outro lado, a incorporação dos conhecimentos ocidentais pelas sociedades africanas, em especial por uma elite educada, moradora das cidades e que, com frequência, havia passado pela experiência do ensino superior dentro ou fora da África, ajudou os países africanos a conquistar suas independências e a buscar caminhos próprios de desenvolvimento e novas formas de organização, inseridos no contexto das relações globalizadas.
A imposição de um tipo de conhecimento de feições ocidentais levou ao enfraquecimento das sociedades africanas enquanto desestruturava algumas de suas instituições, mas também permitiu a formação de líderes políticos, profissionais liberais e intelectuais capazes de tomar a frente dos movimentos de libertação do domínio colonial e da elaboração de projetos para os países que se constituíam. Acesso ao conhecimento é geralmente acesso ao poder, em suas múltiplas faces, e por isso há uma disputa acerca do que deve ser ensinado e de que forma deve se dar a transmissão dos saberes. O lugar que a educação ocupou no processo de colonização da África é exemplar quanto a isto, assim como das possibilidades libertadoras da educação, na medida em que o domínio sobre os códigos do opressor é um caminho para que seja anulado o controle que ele exerce sobre os grupos sociais.
Marina de Mello e Souza é professora de História da África na Universidade de São Paulo e autora de África e Brasil africano (Ática, 2013), e Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de rei congo (Editora da UFMG, 2006).
Saiba mais
ACHEBE, Chinua. A flecha de Deus. Trad. Vera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Companhia das letras, 2011.
ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o Protetorado Britânico. Ensaios. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
HABTE, Aklibu; WAGAW, Teshome & AJAYI, J. F. Ade. “Educação e mudança social”. In: MAZRUI, Ali A. & WONDJI, Christophe (eds.). História Geral da África VIII. África desde 1935. Brasília: Unesco, 2010. Em: http://unesdoc.unesco.org/ images/0019/001902/190256POR.pdf
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. “A tradição viva”. In: KI-ZERBO, Joseph (org.). História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. Brasília: Unesco, 2010. Em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190249POR.pdf
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. Trad. Xina Smith de Vasconcellos. São Paulo: Casa das Áfricas/ Editora Palas Athena, 2003.
MAATHAI, Wangari. Inabalável. Memórias. Trad. Janaína Senna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
Filme
Pouco a pouco. Coleção Jean Rouch (Midas Filmes, Lisboa, 1969, 92 min).
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