Tão natural é que Chico integre a comitiva oficial dos golpeados no Senado quanto desonesto é que sua presença seja vendida como a própria representação da verdade
06/09/2016
Carlos Andreazza, O Globo
Nada de errado há em que um artista milite — manifeste-se — politicamente. Penso em Chico Buarque. É um indivíduo. Acima de tudo: um indivíduo. Suas escolhas, ao longo de várias décadas, resultaram no que é casamento indissolúvel com o Partido dos Trabalhadores. Boas ou não, as consequências disso lhe são exclusivas.
Como exclusivas lhe são também as decorrências de — sendo escritor, com livros publicados — ter se associado ao grupo mobilizado contra a liberdade de expressão no já clássico episódio das biografias. É possível gostar — ou não — da obra de Chico Buarque apesar desse flerte com a censura e independentemente de seu apoio incondicional à ditadura de Fidel Castro.
A incapacidade de fazer tal distinção de campos é um dos nódulos da doença brasileira. Nada de errado há, pois, em que um artista, em sua condição individual (a que a todos iguala), tome partido e — oh! — erre. Convém que atentemos a isso — que humanizemos o mito — no momento em que tanto se fala sobre como cada um entrará para a história à luz do impeachment de Dilma Rousseff.
Autoritário, contudo, é que a posição política de um artista, porque artista, imponha-se como superior à dos que não concordam com ele. Fama não crava certeza. Talento não ergue pensador. Voz não esculpe compromisso com a liberdade — aí está Roberto Carlos a nos lembrar. E olhos verdes não nos fazem enxergar melhor. De modo que: tão natural é (cafonice à parte) que Chico Buarque integre a comitiva oficial dos golpeados-fatiados no Senado quanto desonesto é que sua presença seja dada — vendida — como a pró- pria representação da verdade, indicação luminosa do time para o qual torcer, comprovação moral de que, sim, é golpe.
Ante tudo quanto já apurado pela Lava-Jato, diante do conchavo para preservar os direitos políticos da ex-presidente, de onde poderá vir tanta certeza? Não seria a dúvida — a desconfiança — o lugar da arte? A facilidade, porém, com que artistas de relevo, vertidos em razão, são mitificados e tornados faróis por meio dos quais precisamos nos orientar é outro dos nódulos da doença brasileira.
O escritor Raduan Nassar interrompeu décadas de silêncio para publicar um artigo a favor dos governos petistas. Ali falou — legitimamente — o homem. No entanto, o conteúdo de seu texto foi escanteado — instrumentalizado por aqueles patrulheiros de sua mesma facção. O importante, segundo o enredo golpeado-fatiado, não era subsidiar a troca de ideias com a palavra de um indivíduo, também artista, mas dar publicidade a que um gênio quebrara anos de reclusão em nome da causa.
O silêncio de repente rompido era — per se— o argumento de autoridade. E bastava — porque cumpria o papel de desqualificar a posição dos mortais. E não terá sido sempre assim? Aquelas dezenas de artistas reunidos, a cada quatro anos, para reafirmar apoio, sem autocrítica, ao PT — o que apregoam senão um argumento de autoridade com a redentora chancela da classe artística?
Há quantos anos o partido se serve de artistas — dando-lhes, em troca, a aura de engajados — para que seu programa de tomada do Estado se esparrame charmosamente? No Brasil, a carteirada mais comum é a que se utiliza da notoriedade conquistada sobre um palco ou na televisão — no ambiente, pois, da cultura e do entretenimento — para pontificar acerca de questões que se conhece apenas superficialmente, ou que mesmo se ignora.
Há irresponsabilidade nisso. Mas não só. Valer-se da popularidade arrebanhada com o violão para influir — desde cima — no debate público é exercício de poder equivalente àquele dos coronéis nordestinos. Em resumo: o manejo do patrimônio pessoal como ferramenta — cabresto — de dominação política. Chico Buarque pode ter se feito o maior compositor do mundo, mas é tão herdeiro, no território da cultura, quanto Aécio Neves no da política.
Sérgio, imenso, e Tancredo, supervalorizado, deram-lhes alguma vantagem. Mas isso não os faz menores. São indivíduos. Se 54 milhões de votos jamais serão salvo-conduto para que um governante invista contra a Constituição, tampouco o será a opinião de um militante; porque foi nesta condição — legítima, mas não diversa da dos que carregam o cartaz “Sérgio Moro na cadeia” — que Chico Buarque esteve no Congresso para assistir à última exibição oficial do dilmês.
Ali, pelo menos calado, ele prestou o mesmo serviço que os patriotas Lindbergh, Gleisi e Vanessa. Ali, pelo menos de óculos escuros, ele era Delúbio, Vaccari et caterva. A mitologia sobre Chico Buarque pode espernear à vontade, mas não o imuniza — gente como a gente que é — de ser questionado por empenhar tanta convicção na defesa de um partido, de um Lula; não o alivia do peso da pergunta que ouvi de um grande homem, por acaso um grande poeta: será que eles não têm dúvidas?
Nenhum comentário:
Postar um comentário