terça-feira, 20 de setembro de 2016

Nunca é demais saber .....

Biografia de Machado de Assis



Esta pequena biografia do maior escritor brasileiro foi escrito por Alexei Bueno, poeta, editor, crítico, e incansável lutador na causa de literatura nacional, que gentilmente me permitiu postá-la aqui:

O ano de 1839, em que veio ao mundo Joaquim Maria Machado de Assis, marcava o fim da década mais conflagrada da história brasileira no século XIX, ao lado da futura primeira década republicana, a de 1890. O período entre a abdicação de D. Pedro I em 1831, em favor de seu filho e a Maioridade do mesmo, aos quinze anos de idade em 1840, ou seja, os nove anos da Regência, foi farto em revoluções, separatistas ou não, em diversos quadrantes do país, como a Rusga em Mato Grosso, a Cabanagem no Pará, a Balaiada no Maranhão, a Sabinada na Bahia, ou a Farroupilha no Rio Grande do Sul. Toda essa instabilidade política só acabaria, de fato, na metade da década seguinte com o território nacional íntegro e pacificado pela espada de Caxias, a “vassoura do Império”.

Não saberemos nunca que ecos dessa situação nacional chegaram ao menino nascido na Corte. Machado de Assis, como é de conhecimento geral, foi homem de um sedentarismo notável, não sabemos se por índole se pelos problemas com a epilepsia ou por ambas as coisas. Em sua vida de 69 anos – idade provecta para os padrões do início do século XX – seu mais longo afastamento do Rio de Janeiro foi uma viagem a Minas Gerais em 1890, já cinquentão, na qual chegaria até Barbacena, à qual se acrescentam umas tantas estadas em Nova Friburgo e uma viagem a Barra do Piraí. Não é por acaso portanto, que em seu romance publicado no ano seguinte, Quincas Borba, o personagem Rubião aparece naquela cidade mineira. A verdade é que com algumas poucas exceções, o Simão Bacamarte de Itaguaí, em O alienista, o Rubião de Barbacena em Quincas Borba, a sua obra imensa toma como cenário o Rio de Janeiro onde viveu, microcosmo absoluto de sua comédia humana.

A importância ímpar e fulcral de Machado de Assis na literatura brasileira, aliada à sua extrema reserva, de toda vida, em fornecer quaisquer informações biográficas, deu ensejo a uma série de lendas ou simplesmente inexatidões a respeito de suas origens, que vale a pena comentar. Do pouco que sabemos, estes são os fatos incontestáveis. Em 1805 casam-se no Rio de Janeiro Francisco José de Assis e Inácia Maria Rosa, seus avós paternos. No ano seguinte nasce seu pai, Francisco José de Assis, que vem a ser batizado na igreja de N. S. do Rosário e São Benedito, então Sé da cidade, ainda existente, mas com todo o interior destruído por um incêndio no ano de 1967. Três anos depois, em 1809 – e agora precisamos atravessar boa parte do Atlântico para apanhar as pontas do tecido do destino, ainda não urdido pelas Moiras – casam-se em Ponta Delgada nos Açores, José e Ana Rosa, que daria à luz em 1812 Maria Machado da Câmara, futura mãe do escritor. Três anos mais tarde o casal José e Ana Rosa embarca para o Brasil com a filha e um seu irmão, seguindo uma onda de imigração açoriana muito incentivada por D. João VI, o Príncipe Regente que em fins deste mesmo ano de 1815 elevaria o Brasil a Reino Unido e seria coroado Rei no ano seguinte.

Com um grande salto no tempo chegamos a 1838, ano em que se casam, sempre no Rio de Janeiro, os pais de Machado de Assis. Ele era pintor e dourador – essa última uma atividade artesanal de certo grau de especialização – ela uma agregada na chácara da rica portuguesa D. Maria José de Mendonça Barroso, no Morro do Livramento, onde como toda a agregada, se dedicava a afazeres domésticos diversos. Tal chácara do Barroso era uma vasta propriedade com uma casa grande e diversas outras construções menores, que dominava o morro onde hoje se encontra uma imensa e feia antena de telecomunicações. Francisco José de Assis e Maria Machado da Câmara se casaram na capela da chácara, onde numa das casas de empregados, lhes nasceria o primeiro filho, o nosso Joaquim Maria Machado de Assis, no dia 21 de junho do ano seguinte. Na mesma capela seria ele batizado, tendo como madrinha a sua rica proprietária lusitana. Sua mãe adotara após o casamento, o nome de Maria Leopoldina Machado de Assis – provavelmente em homenagem à mãe de D. Pedro II, a Princesa Leopoldina.

A partir desse quadro, que inclui quase tudo de documental que sabemos, é preciso destruir duas lendas cada vez mais disseminadas e exageradas a respeito do escritor, a miséria extrema em que teria nascido, o baixíssimo nível cultural de seus pais e a sua dominante negritude, para usarmos a afortunada palavra criada por Léopold Senghor. Para dar exemplo do nível de difusão dessas lendas, registramos aqui que em 2008, ano do centenário de morte de Machado de Assis, pudemos ouvir afirmar-se publicamente que seria ele filho de uma lavadeira negra analfabeta.

O biógrafo Gondin da Fonseca, em que pese o seu caráter atrabiliário e o seu freudismo de pacotilha, conseguiu, sujando as mãos no pó dos arquivos eclesiásticos, encontrar a certidão de casamento dos pais de Machado, documento da maior importância na qual constatamos pela desenvolta assinatura de sua mãe, que se tratava de uma jovem perfeitamente alfabetizada. Seu pai, que como pintor e dourador não era um joão-ninguém sem qualificação, era pardo, filho de pardos e a sua mãe uma portuguesa açoriana branca. Tratava-se, portanto, de uma família comum do que poderíamos chamar talvez com certo anacronismo, de classe média baixa da época. Sua composição étnica era, igualmente, o que de mais comum poderíamos encontrar no período na cidade maciçamente portuguesa que era, e ainda continuou a ser por muito tempo o Rio de Janeiro, com uma população autóctone livre altamente miscigenada, após quase três séculos de escravidão. Vale a pena lembrar também que Francisco José era assinante do Almanaque Laemmert, ou seja, um homem que lia, ou que no mínimo, gostava de estar informado.

Machado de Assis, pelas fotografias da juventude – com destaque para a magnífica fotografia descoberta em 2008 pelo grande bibliófilo carioca Manoel Portinari Leão, em que aparece sentado de perfil, como se lesse um livro, aos 25 anos de idade, tirada por Insley Pacheco e divulgada primeiramente na exposição comemorativa da Academia Brasileira de Letras – era, fenotipicamente, um mulato claro com cabelos castanhos lisos a partir da testa e que se encaracolavam à medida que dela se afastavam. Tinha lábios grossos e um nariz de largura mediana. Tais dados, sem qualquer importância, são aqui registrados apenas como contestação da tendência espantosamente crescente da parte de movimentos racialistas brasileiros a representar o autor de Dom Casmurro como um africano puro – como o foi, por exemplo, o grande Cruz e Sousa – ou um negro retinto. Machado de Assis não se distinguia como mestiço, de inumeráveis membros da mais alta elite do Império, como Francisco Acaiaba Jê de Montezuma, o Visconde de Jequitinhonha, como Domingos Borges de Barros, o Barão de Pedra Branca – que José Bonifácio chamava de Barão de Pedra Parda – como Saldanha Marinho, Presidente das Províncias de São Paulo e Minas Gerais, ou como João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, ideologicamente o maior escravocrata de seu tempo.

O que sempre nos parece ter sido posto de lado na caracterização do homem foi a imensa importância de Portugal e da colônia portuguesa do Rio para a sua formação. Há uma palavra – da qual não gostamos aliás – muito em voga, pertencimento, que nos parece, no entanto, servir ao caso. Vale a pena lembrar que o carioquíssimo Joaquim Maria Machado de Assis era filho, marido, afilhado e cunhado de portugueses, para não citar os seus inúmeros amigos lusitanos ou a sua precoce frequência do Real Gabinete Português de Leitura. Em homenagem a Camões, nas apoteóticas festas binacionais do seu tricentenário de morte em 1880, escreveu ele cinco sonetos dos quais quatro, belíssimos, foram depois integrados a seu grande livro de poemas Ocidentais, publicado nas Poesias completas em 1901, sem edição independente. Em 1885 no livro O Marquês de Pombal, editado em Lisboa para comemorar o centenário de morte do todo-poderoso ministro de D. José I – ocorrido de fato três anos antes – publicaria Machado A derradeira injúria, quatorze sonetos formalmente nunca repetidos, de uma qualidade excepcional. No já lembrado Ocidentais encontramos igualmente poemas em homenagem a dois escritores nascidos no Rio de Janeiro mas pertencentes às letras portuguesas, Antônio José da Silva, o Judeu, e Gonçalves Crespo. Parece-nos, portanto, que Machado, o escritor e o homem, sempre sentiu uma grande ligação com o lado materno de sua ascendência. O Rio de Janeiro de sua época, e isso até a sua velhice e ainda após a sua morte, era uma cidade de tal maneira portuguesa que deu ensejo à conhecida piada de Luís Edmundo, o grande cronista carioca, quando de sua primeira viagem à nossa antiga Metrópole. Interrogado sobre o que achara de Lisboa, teria respondido: “Igualzinha ao Rio de Janeiro, com menos pretos e menos portugueses.” Até a década de 1920, de fato, mais de 90% do comércio carioca pertencia à colônia, o que deu ensejo às violentas diatribes do jacobino e lusófobo Antônio Torres contra João do Rio – ambos mulatos como Machado – sendo este último conhecido defensor da mesma através de seu jornal A Pátria.

Da infância do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas não sabemos de quase nada, o que é notório. Em 1841 nasce-lhe uma irmã, Maria, que viria a morrer com quatro anos de idade em 1845, numa das muitas epidemias de varíola que avassalavam regularmente a cidade. A mesma epidemia levou-lhe também a madrinha, a Viúva Barroso do Morro do Livramento. As deploráveis condições sanitárias da cidade continuariam como tais até a radical campanha de Osvaldo Cruz no governo Rodrigues Alves, já no outro século. Em 1849, ano de seu décimo aniversário, o menino Joaquim Maria perde a mãe, tuberculosa, com 37 anos. Sucumbia ela à grande doença de sua época, para os que escapavam da febre amarela e da varíola. Cinco anos depois seu pai se casaria novamente com Maria Inês da Silva, sua madrasta pelo resto da adolescência, que parece ter-lhe tratado com muito carinho. Neste mesmo ano de 1849 nasciam Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Dois anos antes nascera Castro Alves. No ano seguinte, 1850, a Lei Eusébio de Queiroz extinguia oficialmente o tráfico de escravos da África para o Brasil. Das relações afetivas de Machado com essas personagens que povoaram seus primeiros anos, sua mãe, sua madrinha, seu pai, sua madrasta, não nos ficou, em sua obra gigantesca, um único depoimento. A afeição que sempre demonstrou por escrito pela esposa e por diversos amigos não lhe rendeu uma só linha descritiva em relação aos que o trouxeram ao mundo, embora tenha dedicado à memória da mãe as Crisálidas e um poema. No extremo oposto de um Gorki – apenas como exemplo – que transformou a sua avó materna numa das mais comovedoras figuras da literatura russa, Machado de Assis, o anti-memorialista, nos surge quase com um ser criado ex nihil, o que sempre muito acrescentou à aura misteriosa que cerca o início de sua vida.
No ano de 1854 ao que tudo indica, começa Machado a trabalhar na tipografia de Paula Brito no então largo do Rocio, a atual Praça Tiradentes, ponto de encontro de muitos escritores da época, à frente de todos o popularíssimo Laurindo Rabelo e entre eles o seu amigo da mesma idade Casimiro de Abreu. É em 3 de outubro de 1854, aos quinze anos portanto, que ele estréia na imprensa e nas letras, publicando no Periódico dos Pobres ― ao menos do que chegou até nós ― o seu primeiro poema, um bisonho soneto intitulado À Ilma. Sra. D.P.J.A. Tinha início a Guerra da Criméia, o grande assunto da época, cujos ecos encontraremos em Dom Casmurro.
De toda essa geração literária de meados do nosso século XIX, assim como daquela que a seguiu, será Machado de Assis para só falar dos grandes nomes, um dos maiores sobreviventes em matéria etária. Entre os poetas, Álvares de Azevedo morrerá aos 20 anos, Casimiro de Abreu aos 21, Junqueira Freire aos 23, Castro Alves aos 24, Fagundes Varela aos 32, Laurindo Rabelo aos 38, Gonçalves Dias com 41 anos. Dos grandes prosadores, Manuel Antônio de Almeida, seu amigo e protetor, morre num naufrágio aos 30 anos, seu muito amigo José de Alencar morrerá aos 48, apesar de imensa obra literária que produziu concomitantemente com a vida política, Aluísio de Azevedo aos 55, havendo abandonado as letras antes disso, quando conseguiu um emprego público como cônsul, Raul Pompéia suicidou-se aos 32 anos e Euclides da Cunha, para fechar a lista, é assassinado aos 43. São dados interessantes que demonstram como junto ao gênio evidente, a longevidade – para a época – atingida por Machado de Assis foi importante para a realização de sua obra monumental, e quanto a literatura brasileira deve ter perdido por mortes precoces e não apenas no século XIX.
Em 1855 passa Machado a colaborar regularmente na Marmota Fluminense, de Paula Brito. No ano seguinte é admitido como aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional, exercendo o ofício até 1858, ano em que chega ao Rio de Janeiro o poeta português Faustino Xavier de Novais, do qual se tornará amigo, fato que terá primordial importância em seu destino. Sua carreira de homem de letras, vocação irresistível, se consolida em variados órgãos de imprensa. Em 1861 inaugura a sua bibliografia, publicando a comédia Desencantos e a tradução da sátira Queda que as mulheres têm para os tolos. No ano seguinte, grande amante do teatro que sempre foi, assume o cargo de censor teatral no Conservatório Dramático Brasileiro. De 1864 data a sua verdadeira estréia, com a publicação de Crisálidas. No mesmo ano morre seu pai e se inicia a Guerra da Tríplice Aliança, o maior conflito bélico das Américas ao lado da Guerra de Secessão americana, que dominará corações e mentes do país até o seu término. Dois anos mais tarde, com a morte no Porto da mãe de Faustino Xavier de Novais, sua irmã Carolina embarca para o Brasil. Em visita ao poeta, que apresentava distúrbios mentais – lembremos que a loucura será sempre um dos temas de eleição da obra de Machado – conhece a irmã do amigo, que se tornará a figura central de seu introspectivo mundo afetivo. Tratava-se de uma bonita mulher – é preciso ver as suas fotos da juventude, não as da velhice, muito mais divulgadas – cinco anos mais velha do que ele. No ano seguinte, em correspondência aberta com José de Alencar apresenta ao público o jovem poeta Antônio de Castro Alves, cuja genialidade escandalosa começava a extrapolar as fronteiras da sua Bahia natal. Em 1869 morre Faustino Xavier de Novais, no dia 16 de agosto. A 12 de novembro, Joaquim Maria se casa com Carolina Augusta Xavier de Novais, na capela particular da casa do Conde de São Mamede no Cosme Velho. Será num dos cinco chalés para aluguel pertencentes à mesma família do Conde de São Mamede, muito amiga do escritor, que anos depois o casal Machado e Carolina encontrará seu pouso definitivo. Em 1870 acaba a Guerra do Paraguai. É o ano em que Machado publica seu segundo livro de poemas, Falenas, e em que Castro Alves, que morrerá no ano seguinte, publica Espumas flutuantes. Nesse ano de 1871 a escravidão no Brasil parece se aproximar de seu fim, com a aprovação da Lei do Ventre Livre em 28 de setembro, graças aos esforços ingentes do Visconde do Rio Branco, mas ainda 17 anos se passarão até que ela acabe. Na França, após a vergonhosa derrota para a Prússia, explode a Comuna de Paris. Em 1872 Machado publica o seu primeiro romance, Ressurreição. No ano seguinte é nomeado, a 31 de dezembro, 1º oficial da 2ª seção da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, início de uma carreira de perfeito burocrata que o libertará da insegurança do mundo das letras e que exercerá brilhantemente até as vésperas de sua morte.
Em 1874 publica o seu segundo romance, A mão e a luva, e no ano seguinte o seu terceiro livro de poemas, Americanas, onde dará a sua colaboração tardia ao indianismo. É curioso notar que enquanto a ficção machadiana é, como dissemos, quase exclusivamente de ambiência carioca e quase inteiramente apolítica, em sua poesia o autor viajará por muitas épocas e lugares que nunca conheceu, assim como externará suas opiniões políticas e sociais de forma até arrebatada, em poemas como Epitáfio do México, Polônia, A cólera do Império ou o furioso Hino patriótico, composto durante a Questão Christie e reproduzido com partitura, em bela página litográfica de Heinrich Fleuiss.
Em 1876 publica seu terceiro romance, Helena, ao qual se seguirá, dois anos depois, Iaiá Garcia. Nesse ano de 1878 tira uma licença na repartição e a 27 de dezembro viaja, doente dos olhos e dos intestinos para Nova Friburgo, onde fica até março de 1879. É nessa viagem ao que tudo indica, que concebe e começa a escrever Memórias póstumas de Brás Cubas, momento de completa ruptura estilística em sua obra, às vésperas dos quarenta anos e do nascimento do Machado de Assis da plena maturidade estética. Em 1880 é representada no teatro de D. Pedro II, a sua comédia Tu só, tu, puro amor…, por ocasião das festas organizadas pelo Real Gabinete Português de Leitura para comemorar o tricentenário de Camões, às quais já nos referimos. Publica, na Revista Brasileira, as Memórias póstumas de Brás Cubas, a sua grande obra-prima enquanto romancista, na nossa opinião, entre os dias 15 de março e 15 de dezembro, obra que sairá em livro no ano seguinte.
Em 1882 publica Papéis avulsos, no qual começa a recolher em livro o inigualável conjunto de narrativas curtas que fazem dele o maior contista brasileiro. A este se seguirá dois anos depois Histórias sem data. Nesse ano de 1884 o casal Carolina e Machado se muda – após haver morado nas ruas dos Andradas, Santa Luzia, da Lapa, das Laranjeiras e na do Catete – para o já lembrado chalé da Rua Cosme Velho 18, onde viverão até a morte de ambos.
1885 assiste à morte de Victor Hugo, o gigante máximo das letras ocidentais, para o qual Machado então escreve o poema 1802-1885 que fará parte de Ocidentais. Nesse mesmo ano publica em A Estação o folhetim Casa Velha, que só sairá em livro em 1944 e que aqui reaparece em edição bilíngue. Alguns críticos tentaram ver algo de autobiográfico nestas páginas, sem maiores indícios comprobatórios.
Nos anos de 1888 e 1889 acontecem, consecutivamente, os dois fatos que alterarão de maneira irreversível o país e sua capital, a Lei Áurea e a proclamação da República, com o consequente exílio da família imperial. Machado, já numa posição única nas letras pátrias, assiste como testemunha discreta aos dois eventos. Em 1890 realiza em companhia de Carolina e da família do Barão de Vasconcelos, a convite dos diretores da Companhia Pastoril Mineira, a sua famosa viagem a Minas Gerais, visitando as cidades de Juiz de Fora, Barbacena e Sítio, atual Antônio Carlos, na qual oito anos depois morreria Cruz e Sousa, na mais completa miséria, aos 36 anos de idade.
1891 vê sair à luz do dia a segunda obra-prima romanesca de Machado, Quincas Borba. Sua velha madrasta, Maria Inês, morre aos setenta nos de idade e o escritor comparece a seu enterro acompanhado por Coelho Neto. Morre também o Imperador Pedro II no seu exílio em Paris. Cinco anos depois, em 1896, publica mais uma recolha de contos, Várias histórias, e é aclamado em 15 de dezembro para dirigir a primeira sessão preparatória da fundação da Academia Brasileira de Letras. O ano seguinte, no qual a instituição começa a funcionar de fato, é o ano da Guerra de Canudos, de inimagináveis consequências para a mentalidade nacional.
Em 1899 Machado de Assis publica a sua terceira e mais popular obra-prima no gênero do romance, Dom Casmurro e os contos de Páginas recolhidas. Em 1901 – ano em que morre a Rainha Vitória, vetusta soberana da maior potência da época, após mais de seis décadas de reinado – lança as Poesias completas, onde aparece o seu novo e maior livro de poemas, Ocidentais. 1902 vê o aparecimento de Os sertões, no qual Euclides da Cunha apresenta às elites de nossa Belle Époque positivista um outro Brasil insuspeitado, vivendo em pleno feudalismo, com uma mentalidade medieval e esquecido de todos.
Três anos depois em 1904, publica o romance Esaú e Jacó. A 20 de outubro morre Carolina, dias antes de completarem 35 anos de casados. Sua dor com a perda da esposa é intensa e duradoura. Ao publicar em 1906 os contos de Relíquias de casa velha, abre o livro com o célebre soneto A Carolina, de um andamento fortemente camoniano. Divide a sua velhice solitária entre a literatura, a repartição, a Academia e a correspondência com os amigos. Em 1908 publica seu último romance, o Memorial de Aires, onde o personagem título se apresenta como observador risonhamente indiferente aos acontecimentos e à passagem dos tempos. Entra a 1º de junho em licença do serviço público para tratamento de saúde. Na madrugada de 29 de setembro às 3h20m, morre em sua casa do Cosme Velho e é enterrado, segundo determinação sua e com grande acompanhamento, na sepultura de Carolina, o jazigo perpétuo 1359 no cemitério de São João Batista, à beira do qual Rui Barbosa, seu sucessor como presidente da Academia Brasileira de Letras, faz o discurso de despedida.

Toda a obra de ficção de Machado de Assis se passa, com raras exceções, como já dissemos, no Rio de Janeiro que viu escoarem-se as suas sete décadas de vida. A cidade, que conheceu como Corte, depois como Capital Federal, é o seu microcosmo, como a Paris de Balzac, a São Petersburgo de Gógol, a Londres de Charles Dickens, para citar uns poucos autores entre inúmeros. No Morro do Castelo – a acrópole quinhentista da cidade, estupidamente demolida em 1922 – só como exemplo, passa-se um episódio de Esaú e Jacó assim como o capítulo 75 de Memórias póstumas de Brás Cubas, onde, recontando as origens de Dona Plácida, aparece a Sé do Rio de Janeiro – cremos tratar-se da velha Sé, lá existente, e assim ainda nomeada muito depois de perder tal dignidade – , talvez o trecho da ficção machadiana que, na nossa opinião, melhor sintetize a sua visão schopenhaeuriana da realidade, da vida intrinsecamente como dor:

“Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. É de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: – Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: – Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia.”

No Caminho de Mata Cavalos – Rua do Riachuelo desde a vitória naval do mesmo nome em 1865 – “a mais carioca das ruas” no dizer do autor, erguem-se as casas contíguas de Bentinho e Capitu. É numa casinha da Gamboa que Brás Cubas, depois morador de uma chácara no Catumbi, monta o seu ninho de amor com Virgínia. A protagonista de A desejada das gentes habita a Glória, onde ficava aliás, o Clube Beethoven, muito frequentado pelo melômano Machado de Assis. É na Igreja do Carmo que Romão Pires, de Cantiga de esponsais, exercia suas funções como músico, a Igreja do Carmo na antiga Rua Direita – Primeiro de Março a partir do fim da Guerra do Paraguai – apesar de ele haver nascido no Valongo onde existiu o velho mercado de escravos, e habitar a Rua da Mãe dos Homens, do nome da igreja do mesmo nome, ainda existente, onde Tiradentes chegou a hospedar-se, a atual Rua da Alfândega. Defronte à Capela Real, bem ao lado da Igreja do Carmo na mesma Rua Direita, morreu a avó de Quincas Borba, atropelada por uma carruagem. No aristocrático Botafogo da época viviam Cristiano Palha e Sofia, que enfeitiçou o ingênuo Rubião de Quincas Borba. E assim por diante, numa enumeração que tão cedo não terminaria…

O Rio de Janeiro é, portanto, para Machado de Assis, o anfiteatro em que ele vê desfilar a dança macabra do egoísmo e da baixeza dos homens, a arena na qual se movem os espectros que horrorizaram o jovem príncipe Sidarta Gautama – antes de ele se tornar o iluminado, o desperto, o Buda – os espectros do sofrimento, da velhice, da doença e da morte, todos inerentes ao destino dos homens, aos quais poderíamos acrescentar um quinto, o mais dificilmente detectável, ainda que ubíquo, o da loucura.

Após sua morte, quase todos os traços físicos de Machado de Assis na sua cidade natal, na sua cidade de eleição, foram desaparecendo pouco a pouco. Da casa em que nasceu, casa de agregados da Quinta do Barroso, nada resta, como a própria chácara, e nem sabemos o ponto exato em que se erguia. Os prédios que abrigaram as repartições em que trabalhou foram todos demolidos. O chalé da Rua Cosme Velho, em que residiu por um quarto de século com Carolina e no qual escreveu grande parte de sua obra, foi posto abaixo no ano do seu centenário de nascimento, 1939, para dar lugar a uma mansão, demolida por sua vez no final na década de 1980 para que se levantasse um edifico de apartamentos com uma pizzaria no térreo, que lá está. Um ano após a sua morte no dia 29 de setembro de 1909, um grupo de acadêmicos inaugurou uma placa de mármore na fachada do chalé, capitaneados por Rui Barbosa, tendo Olavo Bilac proferido um discurso na ocasião. O chalé foi demolido mas a placa se conserva no Pátio dos Canhões, no Museu Histórico Nacional, numa grande ironia machadiana ou num retrato de um país em que se destroem as casas históricas e se conservam as suas respectivas placas comemorativas. O Silogeu Brasileiro, onde ele presidiu a Academia e onde foi velado, também foi posto abaixo. De todas as casas em que viveu, a da Rua da Lapa onde esteve com Carolina por uns poucos meses logo após o casamento, parece que ainda existe, salvo um erro na confrontação das numerações. Todas as outras desapareceram. A capela em que se casou nos fundos da casa do Conde de São Mamede no Cosme Velho, esta ainda existe, sem altar ou outro resquício de função religiosa, assim como a própria casa, onde ele ia jogar gamão quase todas as noites. Seu túmulo, finalmente, seu e de Carolina no Cemitério de São João Batista, o “leito derradeiro” do soneto, foi desmantelado no final da década de 1990. Suas cinzas – pouco mais do que isso resta de um corpo enterrado por noventa anos no úmido e ácido solo carioca – foram, juntamente com as de sua mulher, recolhidas ao Mausoléu dos Imortais no mesmo cemitério.

Seu espectro, este persevera por todos os recantos do velho Rio de Janeiro, um espectro a mais, a observar os outros cinco que enumeramos acima.

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