Que o ‘pokémundo’ seja corrompido por um vírus incurável, o ‘antipokévirus’
Muitos anos antes de as criaturas do Pokémon Go invadirem a cidade com suspense hitchcockiano, cronistas da pesada decretaram que na era da internet os passarinhos que Rubem Braga via na janela estavam mortos: a janela, agora, era o computador, e os passarinhos seriam substituídos pelos babados&baladas da rede.
Os pássaros, que não sabem ler, ignoraram a notícia e continuaram a visitar quem se dispusesse a desviar do monitor e dar uma espiada pela janela. Maritacas já entraram no meu escritório para roubar linhaça. Semana passada, um vizinho e sua esposa vieram avisar que apareceu um tucano no parapeito:
— A gente até mandou foto pro Ancelmo.
— Que tipo de tucano? — desconfiei.
— Fique tranquilo. Não era o Aécio. Era um tucano do gênero ave.
E olha que o prédio nem é tão cercado assim de floresta, fica numa rua arborizada na parte baixa do Alto Leblon. O bicudo deve ter vindo do Dois Irmãos, que não fica longe.
Agora que Pokémon é a cultura da hora, vão dizer o que, os profetas? Que os novos passarinhos são os monstros criados nos servidores de uma potência do entretenimento de geolocalização, e a janela da crônica é o celular?
Vão plantar batata, amolar o bode e nem precisam ir ver se estou na esquina: estou. E aqui não encontrei criatura alguma que não fosse feita de moléculas. Mas ouvi pessoas adultas, maduras, comentarem, trêmulas, que já há pokémons aquáticos no Leme, o que as obrigará a visitar o bairro para constatar sua presença e caçá-los. Que legal!
Se é assim, prefiro programa de índio no senso estrito: pescar, pois há peixes de verdade no Leme e uma pedra da qual pendem anzóis.
Não venham dizer que é só um jogo. Não é.
É a realidade de muita gente, cada vez mais gente: caçar monstros numa camada virtual da cidade. A paisagem, por sua vez, é só o cenário, o décor: reais, mesmo, são os “poképeixes”.
Há quem diga que, ao menos, as pessoas, assim, vão à rua, não ficam enfurnadas, caminham quilômetros, mesmo que seja atrás de bestas “pixélicas”. Antes, coitadas!, passavam os dias jogando em casa ou vendo pornografia.
Não me convencem. Pois no caminho há quadras de vôlei, há o mar (tchibum), a areia, as sereias, o altinho, a madeira e a borracha do frescobol. O cais, os navios, o caos, tanta gente que passa a pé e de bike. Há a maior floresta urbana do mundo. Há teatros. Praças. Bancos para ler.
Mas não! Vamos ver quantos “pokepássaros” saltaram da Pedra da Gávea hoje! Se algum pousou da asa-delta, se outro bicou o pano do parapente. Vamos caçar com a família!
Já disse, no Facebook, que não vou, jamais, jogar Pokémon Go. Uma turma me lançou os adjetivos de praxe: chato, saudosista, romântico, implicante, do contra, bobo. Uns, mais políticos, persuasivos e provavelmente recém-viciados em Pokémon Go, disseram que, se eu tentar, vou gostar. É bem provável.
Mas gostar, muitas vezes, é uma escolha. O triunfo da vontade (de não fazer) sobre o desejo (de fazer) pode ser útil, vital, para garantir uma certa integridade mental e manter os pés e os olhos na realidade. Que oferece, diariamente, o espanto da natureza.
Disseram também que uma pessoa que usa o Facebook não tem moral para atacar o universo Pokémon. O Facebook por vezes é um saco, mas eu o utilizo para compartilhar textos, imagens, opiniões, músicas. Para conversar em grupo com criaturas vivas numa praça eletrônica na qual cada um pode ser o centro e a periferia ao mesmo tempo.
Faço isso em alguns intervalos de minha convivência com a matéria (ela existe). Quando começo a ser assaltado por impulsos de checagem sociovirtual compulsiva, desativo a conta por algumas semanas.
Mas nunca usei, nem usarei, um aplicativo para incluir no rol de minhas preocupações e motivações o fato de que há “poképeixes” no Leme. Juro por tudo que é mais sagrado. Não, isso nunca será uma assunto digno de nota, ou um assunto digno, e ponto.
Por isso grito: “Pokémon go home!”
Não é um arroubo nacionalista: é um arroubo humanista. Que vão para o mundo de onde vieram: o das mentes ocas, do vazio de saber, do investimento na imbecilização, no desejo de escravizar mentes e corpos para manter viva a máquina da exploração inútil dos sentidos e do pensamento.
Para terminar, lanço uma praga: tomara que numa dessas atualizações diárias histéricas do jogo, o pokémundo seja corrompido e subvertido por um vírus incurável (o “antipokévirus”), gerado a partir de seu próprio código de programação, tomado por um surto de inteligência artificial.
E que tudo se desfaça e se dissolva numa grande massa cinzenta não passível de geolocalização, que funcionará como uma metáfora, a representar aquela parte de nós que, quando não é usada por muito tempo, atrofia. E enfraquece nosso livre-pensar, minando a resistência aos embustes com os quais os senhores da Nova Era conseguem distrair a espécie, alienando-a do viver.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/pokemon-go-home-20000965#ixzz4JZwzNM7x
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