É desumano demonizar o entretenimento, o lazer e o esporte. Eles são invenções da mente humana, tão nobres quanto as artes, a matemática, a política, a medicina
É um grande engano achar que o povo brasileiro é otimista e alegre, que vive com um pandeiro na mão à espera de dias cada vez melhores e mais prazerosos. Como escreveu Paulo Prado, somos um povo triste, resultado da confluência de exilados de três etnias tristíssimas de distintos continentes: o português melancólico com saudade da península, o índio expulso de suas terras e os africanos que vieram escravizados. Nenhum dos três queria estar onde estava.
Nossa festa nacional é o carnaval, uma máscara que usamos para nos convencermos, a nós mesmos, de que somos felizes. Uma espécie de intervalo comercial para convencermos o mundo de que vale a pena viver em nosso exílio, que ele é uma graça divina. Somos o novo povo escolhido, sem passado algum e com um vasto, permanente e interminável futuro pela frente. A expectativa em torno da Olimpíada no Rio de Janeiro não podia ser diferente desse modo de ser.
Começamos por desacreditar em nossa capacidade de realizar tal proeza até, de repente, tudo virar festa. Como aconteceu na Jornada Mundial da Juventude de 2013 e na Copa do Mundo do ano seguinte, preferimos achar que nada vai dar certo, duvidar de nossa capacidade para coisas grandiosas, condenar nosso empenho ao fracasso. Mas aí as multidões surgem diante de nós, e nós sorrimos para elas, ansiosos para que nos amem. E, numa virada de comportamento, advertimos o mundo de que o Papa pode ser argentino, mas Deus é brasileiro. Uma pretensão que só quem não olha para trás é capaz de ter.
Há um velho mito entre os povos latinos de que é melhor imaginar sempre que nada vai dar certo, para assegurarmos nosso estoicismo diante do eventual fracasso e não sofrermos tanto pela autodecepção. Mas, no fundo, até que somos bem eficientes.
Do modo que foi feita, Brasília foi um grande equívoco, mas foi construída em menos de cinco anos, como exemplo do que éramos capazes. No ensaio “Autoimperialismo”, Benjamin Moser, professor americano que descobriu Clarice Lispector para o mundo, diz que “o atraso aparentemente incorrigível do Brasil, sua dolorosa carência de desenvolvimento econômico, sua vergonhosa irrelevância geopolítica, tudo seria varrido por uma metrópole de modernidade estonteante erguida nos altiplanos de Goiás”.
É de nosso costume essa preferência pelo monumento, nosso gosto pelo estatuário no lugar da vida corrente, pelo palácio que admiramos de fora, em vez das ruas em que pisamos e que não existem na capital. O carnaval também é isso, um espaço de manifestação monumental para esquecermos quem somos, com nossa história contada em carros alegóricos cheios de fantasia. E assim conquistamos os que pensam que nos conhecem.
Não sei quanto está custando aos cofres públicos essa Olimpíada; imagino a que outros investimentos prioritários esses recursos poderiam estar servindo. Diante da grave crise no país, talvez eu dissesse não à realização dos Jogos no Rio, se fosse consultado antes de iniciados os trabalhos. Mas então teria que ser também contra os investimentos públicos no carnaval, contra o que o estado gasta com o futebol, contra o Natal e a árvore da Lagoa. Uma vez que não me deram o direito de vetá-la, só me resta cair de boca na festa. Como, aliás, todo o país já demonstra estar a fim. A cidade está bonita, um pouco mais distendida e risonha, as pessoas fazem longas filas para selfies com o logo dos Jogos em Copacabana. Ainda me consola saber que o Rio é a cidade com a melhor gestão fiscal entre as capitais do Brasil (segundo o Índice Firjan de Gestão Fiscal para 2015).
É desumano demonizar o entretenimento, o lazer e o esporte. Eles são invenções da mente humana, tão nobres quanto as artes, a matemática, a política, a medicina, qualquer outra atividade que vise melhorias em nossas vidas. Na Antiguidade, por exemplo, os Jogos Olímpicos interrompiam guerras, superavam crises, serviam para os homens aprenderem a gostar de viver e disputar sem precisar eliminar o outro. Um intervalo na miséria humana que existe desde sempre.
Como na Jornada, na Copa e nos carnavais, tenho certeza de que os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro vão dar certo. Os mais renitentes ainda podem torcer o nariz na agonia de nosso pessimismo clássico, de nossa autocrítica cruel, de nosso sentimento de que nada pode nos dar certo. Mas, subitamente, como em outros eventos públicos, nos encantaremos com o monumental que conseguimos pôr em cena, mostraremos a nós mesmos que ainda podemos sonhar com que acabe tudo dando certo. Como sempre, um sol luminoso nascerá mais uma vez, e aí vai ser uma festa permanente, até que outra crise nos abata de novo. Apesar de tudo, nós gostamos de dar festas e sabemos dar boas festas, mesmo que a alma esteja em chamas.]
Cacá Diegues é cineasta
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/viva-olimpiada-19815361#ixzz4GgBsi9gn
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