Machado de Assis é incontestavelmente um dos maiores escritores da literatura brasileira. Está citado no livro Gênio, de Harold Bloom, renomado crítico da atualidade, entre os cem maiores escritores mundiais. Segundo Bloom, “Machado reúne os pré-requisitos da genialidade. Possui exuberância, concisão e uma visão irônica ímpar do mundo”.
Apesar de todo reconhecimento e homenagens, cem anos depois de sua morte, há ainda quem insista em repetir a leviana afirmativa de Hemérito dos Santos, de que o escritor não se envolveu na causa abolicionista e negou sua origem.
Com o propósito de oferecer uma contribuição, ainda que pequena, no estudo da personagem negra, seu múltiplo processo de construção, sócio-histórico-literário, e nele começar a desvelar a face da personagem negra na obra de Machado de Assis, desenvolvemos uma pesquisa, concluída em 1997, que resultou no livro Imagens, Máscaras e Mitos; o negro na obra de Machado de Assis.1
“A ficção é imitação [...] da ação, isto é, disto que já conhecemos como ação e interação no envolvimento físico e social”,2 afirma Paul Ricoeur. Ao buscarmos a personagem negra na literatura, estamos também buscando a representação desta “ação e interação” do elemento negro na sociedade do seu tempo.
No tempo de Machado, as teorias raciais e crenças etnocêntricas ainda apregoavam uma hierarquia etnográfica na qual o negro ocupava o último grau da escala social. Assim, embora elemento integrante (juntamente com o branco e o índio) da civilização brasileira, era marginalizado. A literatura não o omitiu, mas sua voz e ação, muitas vezes, quando não apagadas, foram tolhidas, distorcidas, ou mascaradas. Sua presença, em geral, se dá por tipos. O indivíduo representa o coletivo.
O discurso a seu respeito variava conforme o posicionamento de quem escrevia: estereotipada, a imagem do negro, passa de dócil, infantil, fiel, subjugada a violenta, feroz, vingativa, em razão dos interesses do momento e contexto em que é inserido o estereótipo.
Nos discursos, porém, a classificação não é estanque. Textos qualificados em uma das duas categorias, às vezes, trazem em seu interior pequenos deslizes do autor, que denunciam um posicionamento diferente do anunciado ou proposto. As Vítimas Algozes, de Joaquim Manoel de Macedo, publicado em 1869, é um bom exemplo disto; embora se apresente como um libelo contra a escravidão, seu discurso é, ao mesmo tempo, antinegro. Para demonstrar quão danosa é a instituição da escravidão e a necessidade de aboli-la, o autor anuncia que contará estórias verdadeiras e mostrará “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravo, inimigo natural e rancoroso do seu senhor”3 MACEDO.
Joaquim Manoel de. - As Vítimas Algozes: quadros da escravidão. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. 2a. ed., p. XIV..
As Vítimas Algozes são o que podemos chamar de romance de tese, conforme Silviano Santiago: “no romance de tese, a verdade se insinua por detrás de cada palavra, de cada gesto, cada cena, induzindo o leitor a pensar ser ela a única a apreender corretamente o significado das cenas ou do drama apresentado pelo texto”4. Nesse sentido, Macedo não está sozinho.
O contraponto é que, ao criar uma imagem do negro escravizado, baseando-se na concepção ideológica senhorial, o autor do discurso, de certa forma constrói, também, a sua própria imagem. Em oposição à selvageria, à indolência, à submissão, à promiscuidade, ele é a civilidade, a moral, o domínio, a posse, a superioridade. Ele é o que o outro não é. Sem se dar conta, talvez, de que nesta construção, ausentando-se o outro, a sua tão bem construída imagem deixa de existir.
É o que se pode ver, bem elaborado, no conto O Espelho5: esboço de uma teoria da alma humana, de Machado de Assis, publicado em Papéis Avulsos, em 1882.
Nele, Jacobino, um jovem pobre, é promovido a alferes da Guarda Nacional. Tal fato é festejado e motivo de orgulho para toda a família. Na fazenda de sua tia, uma fazendeira escravista, não é mais chamado pelo nome, só pelo título. Todos os escravos estão obrigados a tratá-lo de “senhor alferes”. Um dia, estando a tia ausente da fazenda, os escravos fogem, abandonando o alferes, privando-o da admiração a que estavam obrigados.
“Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes (...) Nenhum fôlego humano.(...) ninguém, um molequinho que fosse. Gatos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois... nenhum ente humano. Pareceu-lhes que isto era melhor do que ter morrido? Era pior”.6
Jacobino, sem os sustentadores de sua “identidade”, percebe-se sem imagem no espelho, único espaço onde, ainda, podia se refletir. O que restou na fazenda foram apenas os animais, instrumentos de produção; bens semoventes, categoria em que os escravos eram incluídos. A questão é que os animais não representam a alteridade, no sentido de refletir a identidade do outro. Na ausência do escravo, cai por terra a ordem escravocrata e com isso o autoconceito de superioridade apregoado pela ideologia vigente em relação aos senhores.
Há nesse conto um absoluto silêncio a respeito tanto da escravidão quanto aos possíveis acontecimentos relacionados aos escravos fugidos. Entretanto, como reflete Eni Orlandi,"O silêncio é. Ele significa.”7 Ao calar-se, Machado abre espaço para uma significação outra, que a óbvia. Uma forma sutil, para gerar idéias.
Mas, se no conjunto da obra do autor estão incorporados elementos históricos e sociais a serem lidos nas entrelinhas, há também momentos em que sua colocação é explícita. Isto ocorre, sobretudo, nas crônicas e na crítica. Vejamos, por exemplo, o trecho de uma carta endereçada a José de Alencar, datada de fevereiro de 1868, na qual Machado tece elogios a Castro Alves8. Esta carta era, de fato, a crítica do escritor, sobre o drama Gonzaga, escrito pelo poeta, portanto, destinada a ser lida pelo público.
“Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui a figura do preto Luiz. Em uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a idéia da abolição. Luiz representa ao elemento escravo. Contudo o Sr. Castro Alves não deu exclusivamente a paixão da liberdade[...]. Luiz espera da revolução, antes da liberdade, a restituição da filha; é a primeira afirmação da personalidade humana; o cidadão virá depois. Por isso, quando no terceiro ato Luiz encontra a filha já cadáver, e prorrompe em exclamações e soluços, o coração chora com ele, e a memória, se a memória pode dominar a tais comoções, nos traz aos olhos a bela cena do rei Lear, carregando nos braços Cordélia morta. Quem os compara não vê nem o rei nem o escravo; vê o homem”.
Serão essas palavras de um omisso, dissimulado para não transparecer sua condição racial?
Bastante explícitos também são algumas poesias e contos, vale notar, escritos antes da abolição. O poema Sabina, publicado em 1875, por exemplo. Embora incluído no livro Americanas, foge à temática indígena, sugerida inclusive pelo título da obra. Sabina é um longo poema que relata a sedução de uma jovem mucama, não embranquecida, mas tratada de forma paternalista. Jovem, virgem de tez morena, cabelos cor da noite escura, busto moldado em modelo clássico e olhos brandos cor de jabuticabas.
A conquista de Sabina não passa pela violência física, prática comum na “ideologia falocrática”9 Sant’Ana, Affonso Romano de. - “O Canibalismo Erótico na Sociedade Escravocrata.”In. Revista do Brasil. Rio de Janeiro: FUNARJ, 1984. N. 1/84. p. 14., descrita de forma magistral por Castro Alves, em “A Cachoeira de Paulo Afonso”. A abordagem é romântica. O narrador, indiferente como o rio, “ao mal ou bem que lhe povoa a margem” desnuda a alma de ambos.
O jovem conquistador, Otávio, volta para a corte. “Com ela a alma não fica. De seu jovem senhor.” Não fica a alma, mas fica-lhe um filho no ventre. A reação dos companheiros de desventura é de total falta de solidariedade, impera a inveja, o ciúme, a maledicência e a superstição. “Após os dias da saudade, os dias da esperança”, e a decepção. Otávio volta casado. Em desespero, Sabina pensa em se matar, mas no último momento desiste.
O poema, embora aparente descrever a aceitação do cativeiro, denuncia a trágica ironia do paternalismo e as suas conseqüências. Uma faceta da escravidão, muito conveniente aos senhores e, em parte, responsável pela crença de que, no Brasil, a vida dos escravos era amena.
A crença na igualdade, pelo tratamento privilegiado, impede de ver: “o fundo abismo tenebroso e largo que separa”10 senhores e escravos. A delicadeza não garante o afeto, nem evita o abandono da escrava, mas facilita a “caçada” do sinhozinho. Além disso, provoca sentimentos desagregadores dentro do meio escravo, afastando a solidariedade e a confiança. Preserva a imagem ideológica, segundo a qual escravo é gente dotada de maus sentimentos, quando não de apatia, servilismo e resignação.
Enquanto Castro Alves denuncia a violência explícita a que os escravos e, principalmente as mulheres, negra e mulata, estavam expostos, Machado revela outras formas de violência, nem sempre tão explícitas, mas igualmente cruéis e doloridas. A violência, que passa pela dissimulação e falsa camaradagem, instituída para amenizar as relações entre senhor e escravo, aumentar a produção, garantir fidelidade e diminuir as fugas e as revoltas, bem como as despesas com segurança ostensiva.
No conto, como em outras obras, não há floreios nem uso de meias palavras. Machado não transforma o negro em herói ou ser extraordinário, nem o pinta com as cores miseráveis da ideologia dominadora. Ele o apresenta como ser humano que é, sujeito em sua condição de oprimido. Sem fazer apologia, mas de forma sutil, o autor, a seu modo, desnuda a realidade senhorial e revela uma sociedade em que a condição econômica define o indivíduo, determina sua exclusão ou aceitação. Uma sociedade que, sob uma fachada moderna e liberal, oculta as bases do sistema colonial, o escravismo e o clientelismo, como bem explicita Roberto Schwarz em Ao Vencedor as Batatas.11
A crônica foi outro gênero de produção escrita que Machado de Assis exerceu com a habilidade criativa e crítica que lhe era peculiar. Nelas, encontramos um Machado de Assis irônico e sarcástico, que enfoca diversos estágios do período abolicionista, as manipulações dos senhores, a violência inerente ao sistema de dominação. Faz isso, ora de forma direta, ora dissimulada, mas preservando um distanciamento crítico e lançando mão dos recursos de estilo que lhe eram comuns.
Muitos seriam os exemplos a serem aqui elencados, mas por que não deixar para o leitor o prazer deste desvelar? Uma leitura mais atenta de algumas das obras e se pode perceber de que lado o escritor está. Para isso, se necessário, não faltam bons guias: Roberto Schwarz, John Gledson, Sidney Chalhoub e outros. Podemos adiantar que a preocupação de Machado de Assis era com o homem, o ser humano e sua interioridade psicológica e moral. O escravo, antes de sua condição servil, era um ser humano; e assim Machado o via e o retratava em sua obra.
Experimente ler, reler! Permita-se um passeio pelo universo cifrado das obras machadianas. Por prazer, deleite-se!
Mailde J. Trípoli é autora do livro Imagens, Máscaras e Mitos; o negro na obra de Machado de Assis (Editora da Unicamp)
NOTAS
1 TRÍPOLI, Mailde Jerônimo. Imagens, Máscaras e Mitos: o negro na obra de Machado de Assis. Campinas/SP, Editora UNICAMP, 2006
2 RICOEUR, Paul. “L’Identité Narrative.” In. Revue des Sciences Humaines. No 221
4 SANTIAGO. Silviano. Desvios da Ficção. In PATROCÍNIO, José do. - Mota Coqueiro. .P. 13.
5 ASSIS, Machado de. “O Espelho“. In. Papeis Avulsos. Rio de Janeiro: Garnier, s/d. p. 221-235
6 ASSIS. Machado de. - “O Espelho”. In O Conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p.142.
7 PUCCENELLI. Eni Orlandi. - As Formas do Silêncio: No Movimento dos Sentidos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. 2a. ed.
8 Assis, Machado. Crítica. (Coleção feita por Mario de Alencar). Rio de Janeiro, Livraria Garnier, Sd. p.54 e55. (grafia atualizada).
10 ASSIS, Machado de. “Sabina”. Op. Cit., p.423
11 Schwarz, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1981. p. 20.
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