segunda-feira, 9 de maio de 2016

Artigo de Opinião - A tortura que permanece







SÃO PAULO — Lá se vão três semanas desde que o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) exaltou o nome de um notório torturador ao votar pela admissibilidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Foi no domingo de 17 de abril. Nos dias seguintes, milhares de manifestações de repúdio às suas palavras, muitas delas acopladas a pedidos de cassação de seu mandato, desaguaram nas repartições públicas da capital federal e respingaram no noticiário nacional. Bolsonaro não recuou, mas procurou se explicar. Alegou que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015, aos 83 anos, embora apontado em processos judiciais como autor do crime de tortura, não foi condenado no Supremo Tribunal Federal como torturador. “Condenação em primeira instância não vale, ele nunca pagou uma pena”, declarou à Rádio Gaúcha (18/4/2016). Em outra entrevista, ressaltou que Ustra “recebeu a mais alta honraria do Exército Brasileiro pelo seu trabalho” (“O Dia”, 24/4/2016). Com essas assertivas, tentou convencer seus interlocutores de que, em sua declaração de voto, homenageou não um criminoso, mas um militar de carreira honrada, um “herói”.


Depois, o assunto esfriou. Como o Brasil tem sido atordoado com pelo menos um escândalo aterrador por dia (o escândalo nosso de cada dia), o episódio tende a cair no esquecimento. A opinião pública tem e terá outras barbaridades de que se ocupar e, quanto às autoridades, as tais que poderiam tomar alguma providência, bem, estas terão mais o que fazer. É possível então que, no correr das próximas semanas, fique o dito pelo não dito.
Será muito ruim se o esquecimento prevalecer. O dito de Jair Bolsonaro no domingo de 17 de abril não foi um dito qualquer. Foi um enunciado incompatível com o Estado de Direito estabelecido pela Constituição de 1988. O deputado fez a apologia não de um crime qualquer, mas de um crime contra a Humanidade, um crime imprescritível, e a prova de que ele teve a intenção de fazer apologia da tortura está nas palavras que ele mesmo pronunciou. Vale recuperá-las:
“Pelo povo brasileiro. Pelo nome que entrará para a história desta data, pela forma como conduziu os trabalhos desta casa, parabéns, presidente Eduardo Cunha. Perderam em meia quatro, perderam agora em 2016. Pela família, e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”.
Atenção para o aposto: “o pavor de Dilma Rousseff”. A função que dá sentido a esse aposto é uma só: a função de torturador. Por que outro motivo o militar homenageado teria sido “o pavor de Dilma Rousseff”?
Todos sabemos que a presidente da República foi torturada durante a ditadura militar. Por isso, ao menos segundo a presunção do parlamentar do Partido Social Cristão, ela teria “pavor” de Ustra. Não há outro motivo plausível para o presumido “pavor”. A fala do representante do Rio de Janeiro foi clara, explícita e completa. Enalteceu, na figura do coronel, os atributos que teriam inspirado o “pavor” na futura presidente. Enalteceu, enfim, a figura do torturador. A apologia da tortura não foi um mal-entendido: foi intencional.
O alcance do aposto invocado por Bolsonaro não se limita ao passado. Como não tem marcado um tempo verbal, seu sentido alcança o presente. “O pavor de Dilma Rousseff” pode ser, em tese, um pavor ainda existente. Nesse ponto, o aposto pode soar como intimidação física — no presente. “Perderam em meia quatro, perderam agora em 2016”, disse o deputado, estabelecendo uma analogia, um espelhamento, entre o golpe de Estado de 1964 e a aprovação do impeachment, em 2016. Seu pronunciamento dá sobrevida ao propósito dos militares e civis golpistas de 1964 e ao velho terrorismo de Estado. Seu discurso prolonga a dor daqueles jovens torturados e parece dar voz, outra vez, ao criminoso que torturava, que abria à força uma incisão na integridade da vítima para arrancar de dentro dela os segredos, os filamentos claros da alma golpeada e todas as chances de futuro. Durante a ditadura, a tortura de presos políticos tinha a ambição de desestruturar sua vítima para sempre. No dia 17 de abril, essa ambição foi louvada na tribuna erguida no centro do plenário da Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil, numa sessão transmitida ao vivo, para todo o País, pelas principais redes de televisão. Foi como se, na democracia alemã no pós-guerra, um representante do povo, cercado pelos seus pares em clima de festa, soltando confetes, fizesse a apologia do nazismo.
Bolsonaro bradou contra o comunismo, como se ser militante comunista fosse um crime no Brasil. Não é. A tortura, sim, é crime. Glorificá-la é atentar contra fundamentos constitucionais da democracia brasileira. Glorificá-la por meio da idolatria do criminoso e pela negação do crime cometido equivale a esquecê-la. A tortura permanece quando dela se esquece.
*Eugênio Bucci é professor de Comunicação da USP


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