quinta-feira, 5 de maio de 2016

Artigo de Opinião - Á espera do primeiro cadáver


Os dois lados precisam baixar a bola das paixões, reconhecer que, numa democracia, todo episódio político deve servir para fortalecê-la, fazê-la avançar

03/04/2016 
Cacá Diegues, O Globo


Repito, pela enésima vez, o que já disse aqui: embora lamente, em vários aspectos, o atual governo, sou contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff, por injusto e inconsequente.

Injusto porque ainda não se configurou nenhum crime de responsabilidade que ela tenha cometido no governo. Inconsequente porque vai dividir mais ainda o país, ameaçando seriamente a paz democrática que custamos tanto a conquistar.

Pelo que vemos nas ruas, o país está rachado ao meio, se aproximando seriamente de um impasse que pode ter graves consequências. É impossível saber qual dos dois lados tem mais eleitor, Ibope e Datafolha não são o voto universal, livre e democrático da população.

Nessas condições, o impeachment de uma presidente eleita regularmente promove uma ruptura social que pode se tornar trágica e sangrenta.

Nem por isso o impeachment seria um golpe. Pode ser (como acho que é) uma iniciativa política gravemente equivocada; mas, se o instituto se encontra na Constituição do país, não há por que chamá-lo de golpe.

Golpe seria desrespeitar a Constituição, desmoralizar seu valor, ignorar o que ela diz. Golpe seria chamar de golpe o que ela afirma ser legítimo.

Os dois lados precisam baixar a bola das paixões, reconhecer que, numa democracia, todo episódio político deve servir para fortalecê-la, fazê-la avançar. Numa democracia, as crises políticas são inevitáveis e sempre bem-vindas, desde que sirvam para aprimorar seu exercício e o do direito de todos.

Não podemos usar as crises como pretexto para eliminar o outro, o que pensa diferente de nós. Nem usá-la como alavanca para a reversão do que é certo.

A presidente Dilma errou quando disse, aos artistas que se reuniram em Brasília, que seu impeachment, com base nas “pedaladas fiscais”, não se justifica porque todos os governos anteriores ao dela também as praticaram.

Ora, é uma insanidade ou uma desfaçatez moral achar que um crime deixa de ser crime porque os outros já o cometeram impunemente e ele se tornou “prática corriqueira”, como disse um senador governista.

Nesse mesmo encontro com artistas, a presidente acertou em cheio ao dizer que “ninguém vai unir o país destilando ódio, rancor, raiva e perseguição”. Como fez a tal pediatra gaúcha, Maria Dolores Bressan, que se recusou a atender uma criança de 1 ano, porque era filho de uma mãe filiada ao PT. Aí, é quase Holocausto mesmo.

Como pode ser um holocausto cultural a censura que os dois lados tentam fazer ao “inimigo”. A Editora 34, por exemplo, vetou a publicação do livro mais recente do pensador e escritor baiano Antonio Risério, “Que você é esse?”, sob o argumento de que, no capítulo oitavo do romance, um personagem vai se prostituir no marketing político, correndo o risco de ser identificado, pelos leitores, aos marqueteiros de Dilma e do PT.

Esses são os intelectuais que denunciam o complô midiático da grande imprensa que, segundo eles, não dá visibilidade às pessoas, aos fatos e às ideias do outro lado.

Mesmo que Sérgio Moro e sua turma tenham cometido erros, notadamente na condução coercitiva de Lula e no grampo do telefonema da presidente, nem por isso deixam de ser heróis nacionais.

Quando antes, neste país, vimos banqueiros e empresários corruptos na cadeia? Quando antes vimos políticos poderosos ameaçados de perder seus mandatos ou simplesmente já em cana?

Atá agora, a Lava-Jato já bloqueou, em bancos suíços, 800 milhões de dólares da nossa corrupção; obteve 93 condenações criminais de corruptos e corruptores, lavadores de dinheiro e formadores de quadrilha; revelou departamentos de propina em respeitáveis empresas clientes do Estado.

Quando antes, neste país, esperávamos assistir, um dia, a esse espetáculo de limpeza política e financeira, só comparável à bem sucedida Mani Pulite, de Antonio di Prieto, que mudou a vida pública na Itália? É preciso blindar a Lava-Jato de toda resistência a ela.

Diante do mau exemplo dos poderosos, o cidadão comum se acha no direito de fazer suas próprias regras, a partir de suas próprias necessidades pessoais. Essa semana, um réu ameaçou atear fogo a uma juíza, se ela não gravasse um vídeo inocentando-o.

Se nossos líderes preferem a companhia de Jader Barbalho e Jair Bolsonaro à de Sérgio Moro, eles estão dizendo ao povo que vale qualquer coisa para conquistar o poder e permanecer nele, custe o que custar.

Os militantes estão nas ruas, com os nervos à flor da pele; é dever dos líderes acalmar os que acreditam neles. Não estou pedindo conciliação, esse clássico instrumento de poder das oligarquias no Brasil; estou pedindo entendimento e concertação, um acerto de modos.

Em vez de gastar o tempo com poses de estadista e ranger de dentes, esse devia ser o papel de gente como Fernando Henrique Cardoso e Lula — um encontro cívico para negociar a distensão.

Se não, o ministro Edinho Silva, da Comunicação Social, é que terá razão: “A radicalização não está no seu auge e, se algo não for feito urgentemente, vai piorar. Vamos esperar o primeiro cadáver? Porque ele vai existir”.

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