A grande humilhação não é na escola. É na vida adulta
Faz um tempinho, Luis Fernando Verissimo, agredido por leitores obtusos, que tinham a mania de levar tudo ao pé da letra, mencionou o “ponto de ironia”. A ideia, uma ironia em si, gerou uma salutar discussão, mas não era nova: o ponto de ironia já havia sido sugerido por dois poetas franceses: Alcanter de Brahm, no século XIX, e Hervé Bazin, que chegou a materializá-lo graficamente, em 1966, na forma de uma bizarra interrogação espelhada.
Verissimo aventava a hipótese de a culpa ser dele, e não dos leitores. Só que isso também era ironia: a culpa era dos leitores, sim, ainda que vítimas da ditadura da objetividade, da falta de leitura, do imediatismo e da descontextualização. Assim como a exclamação, a interrogação, a vírgula e outros adereços, o ponto de ironia serviria para orientar os desavisados sobre os momentos em que o autor propõe um duplo sentido, vale-se de humor sutil ou diz uma coisa para significar outra.
Obviamente, o ponto de ironia jamais seria oficializado. Mas tais imaginações exóticas são boas para se pensar sobre a maneira como as pessoas, talvez mais hoje do que ontem (pois o acesso à informação aumentou exponencialmente), tendem a fugir de qualquer campo complexo de significação.
Como se as narrativas e as grandes questões sobre a existência se passassem, todas, numa tela bidimensional com uma planilha do Excell contendo duas colunas. Para resolver qualquer situação, é só marcar um X na coluna preferida, e seguir em frente com a consciência limpa e sem aporrinhações.
Exemplo crasso foi a onda de simplismo após o massacre numa escola em Realengo, anos atrás, ao se descobrir que o jovem assassino havia sofrido bullying. Não se tratava de discutir os excessos, mas de demonizar toda molecagem e santificar toda fraqueza. Assim, os pais omissos, ou abusivos (o bullying começa em casa), lavariam as mãos. A coisa chegou ao ponto de se querer criminalizar e planificar os comportamentos numa idade em que as personalidades estão em formação.
Pensava-se, também, que ocorreria uma febre de massacres: uma geração de vítimas de bullying, como o rapaz de Realengo, sairia por aí, a partir daquele dia, exterminando crianças. Claro que nada disso ocorreu. Não somos os EUA, onde tal fenômeno combina o culto às armas com o binômio winner/loser — rótulos que, na cultura daquele país, fundamentam e escravizam os juízos interpessoais da infância à aposentadoria, permeando toda vida adulta.
É neste ponto que queria chegar: há, lá e aqui, em versões diferentes, um bullying disseminado pela vida adulta e que não apenas mostra suas garras nos ambientes do trabalho (onde corre solto o assédio moral); nas relações entre a polícia e a população menos favorecida (as UPPs são usinas de humilhação); no império das milícias; nos abusos do comércio contra o consumidor; no desprezo dos bancos pelos correntistas; na exclusão consciente e planejada dos torcedores de baixa renda dos estádios, que as gerações anteriores tinham como sua casa; nas dinâmicas do racismo e do preconceito social.
Mas há um bullying sutil nas situações mais corriqueiras, para as quais, assim como o ponto de ironia, necessitaríamos de uma legenda explicativa. São casos em que, simultaneamente, nos vemos na posição do sacana e do sacaneado. Por exemplo, dias atrás, numa sessão do filme “O regresso” (“The revenant”), após os trailers, as luzes se apagaram e começaram as vinhetas que antecedem o filme principal. Momento que para muitos espectadores é sagrado, como um prelúdio. Exige concentração para a fruição da obra que se inicia. Na fila da frente, um rapaz alegremente respondia a torpedos, a luz branca ofuscando a que vinha da tela, mais suave. Impulsivamente, elevei a voz e ataquei:
— Se manca, viciado!
O rapaz olhou para trás, pensou em reagir à agressão desnecessária (eu podia ter pedido com delicadeza), mas, resignado, voltou à posição inicial e desligou o aparelho.
Três filas atrás de mim, contudo, um sujeito que eu nem via vestiu a carapuça e inverteu a gangorra do bullying:
— O que é que você tem a ver com isso, seu imbecil? — gritou, como se fossem só ele e seu celular no cinema.
— Simples: eu quero ver o filme — respondi, desta vez com educação, na nova posição, agora a do agredido.
É assim quando o sujeito liga o rádio alto num ônibus. Se o outro, que lê jornal, reclamar, é capaz de levar uma bifada no nariz para não se meter onde não é chamado.
É assim com as dez pessoas que entram num elevador antes que as que estão lá dentro saiam. E essas mesmas vítimas repetirão o rito quando forem entrar no metrô lotado e quase massacrarem senhoras idosas.
É assim quando um deputado dá uma banana ao eleitor. Quando a mãe dá uma bofetada na cara do filho. Quando o playboy passeia com o cão selvagem solto e sem mordaça. O moleque na escola, o porradeiro ou o bundão — são só produtos, em interação, do meio em que se meteram sem pedir para nascer: a casa, a família, o vizinho, a vida.
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