Por Inácio França, Raíssa Ebrahim and Maria Carolina Santos em 05/06/2020, 07:15.
A lei 13.869, ou lei do Abuso de Autoridade, é a explicação oficial para o fato do nome de Sarí Mariana Gaspar Côrte Real ter sido ocultado nos informes da polícia sobre a morte do menino de 5 anos. Mas só isso não explica porque as primeiras notícias foram publicadas pela mídia local sem a identificação da patroa da mãe da criança, responsável por ter deixado o pequeno Miguel sozinho no elevador do edifício Píer Maurício de Nassau, uma das “Torres Gêmeas” do Cais de Santa Rita.
De acordo com a nota oficial da Polícia Civil, o nome de Sarí Côrte Real não foi revelado aos jornalistas porque, desde que a lei entrou em vigor no dia 3 de janeiro, os nomes dos suspeitos de crimes em investigação deixaram de ser informados. Nesse caso, a decisão de aplica à empregadora da mãe de Miguel. Desde janeiro, os releases com os resumos das prisões e operações policiais têm sido divulgados apenas com as iniciais dos acusados.
“Todo dia a gente vê nome e foto de suspeito em todo canto”, provoca Chiara Ramos, professora e cofundadora do coletivo Abayomi Juristas Negras. Na Lei 13.869 há controvérsias de interpretação, aponta ela.
“A que considero estar de acordo com a constituição é que nomes e imagens podem ser divulgados sim, deixando evidente que se é suspeito sem nenhum pré-juízo de culpabilidade. O que a lei expressamente proíbe são os casos de constrangimento vexatório, como existe nos programas policiais”, detalha.
Duas justiças
“O sistema jurídico funciona diferente a depender da qualidade do cidadão. No Brasil, temos uma classe de sobrecidadãos, acima da lei, que só pegam desse sistema os seus privilégios, mas não recebem penas e sanções. É a branquitude, as pessoas de classe financeira mais alta. E temos uma classe de subcidadãos, inseridos no sistema, mas só pra receber a penalidade”, evidencia a professora.
Chiara lembra a herança escravagista do país e sua política eugenista para mostrar como as estruturas reforçam a questões de dominação: “Os agentes públicos não vão fugir da estrutura que coloca nessa posição corpos negros com certos estereótipos. Um jovem negro da periferia tem um estereótipo, ele pode estar segurando seu diploma e o policial achar que é uma arma. Uma mulher negra que entra numa loja de objetos caros pode ser perseguida por um segurança. É normal nossa mente trabalhar com estereótipos, mas eles são reforçados por estruturas de dominação”.
A leitura que Chiara faz do homicídio de Miguel, e de tantos outros casos que têm corpos negros como alvo, é que esses fatos mostram como, nessa estrutura, a categoria de subcidadãos importa menos para a sociedade. Dificilmente, se, ali nas luxuosas Torres Gêmeas, fosse um menino branco ou uma criança que alguém olhasse como filho, neto, sobrinho, Sarí teria deixado entrar no elevador e apertado o botão para levar o menino para longe da vista.
“Pessoas brancas só convivem com pessoas negras em posição subalternidade. Se cuida bem dos seus e de si, mas dos outros nem tanto”, reforça Chiara. O racismo presente no crime de Sarí não está no crime em si, mas ele é consequência do sistema em que “vidas negras importam menos e incomoda muito o choro de um menino negro na sala”.
Chiara não é penalista, mas defende que, se a patroa realmente apertou o botão e deixou o menino subir no elevador, ela correu o risco do resultado. Então, caso seja caracterizado o dolo eventual, Sarí precisa ir a juri. Se forem descobertas evidências de que houve o dolo, o caso precisará ser recapitulado. Quando o delegado Ramón Teixeira apresentar o relatório do inquérito, o(a) promotor(a) também pode denunciar o caso com base em outras provas.
Não foi só a polícia que manteve em segredo a identidade de Sarí. Os veículos de comunicação de que fazem a cobertura cotidiana da cidade também contribuíram ao contentar-se com as informações oficiais repassadas pelos delegados. O nome de Sarí tornou-se público graças às tias e primas de Miguel, que usaram seus perfis nas redes sociais para identificá-la.
O jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea e professor universitário Paulo Victor Melo não tem dúvidas que a tentativa de manter o nome ausente do noticiário aponta para dois aspectos da sociedade. “O primeiro é o viés do racismo estrutural que obriga uma trabalhadora negra a levar seu filho para o trabalho, expondo ambos à pandemia, quando devia estar protegida em casa. Segundo, é a relação íntima que existe entre a mídia o poder politico e econômico”, afirma.
Melo recorre a uma citação de Muniz Sodré, um dos maiores pensadores da comunicação, para ressaltar o racismo da mídia brasileira: “Esse racismo na imprensa se dá por negação, estigmatização e indiferença profissional. Não é possível noticiar determinados fatos sem considerar o fator racial. E. nesse caso específico, o fator racial não pode ser desconsiderado”.
OAB acompanhará inquérito
A Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE) designou a Comissão de Direitos Humanos para acompanhar as investigações do caso Miguel. O presidente da comissão, Cláudio Ferreira, informou que irá se habilitar no inquérito que apura as circunstâncias da morte da criança para acompanhar o caso e também que abriu diálogo com a Rede de Mulheres Negras, se colocando à disposição do movimento.
Sobre o inquérito, Cláudio afirmou que irá aguardar a posição oficial da Polícia Civil para se manifestar sobre a questão. Além dele, a advogada Maria José Amaral, conselheira licenciada da subsecção de Jaboatão dos Guararapes, também irá acompanhar o caso em nome da comissão.
Em conversa com a Marco Zero Conteúdo, Cláudio fez uma provocação questionando como seria o desenrolar do caso se a empregada fosse acusada. Provavelmente teria sido fixado um valor alto de fiança, ela não conseguiria pagar e estaria presa.
A reportagem tentou falar com Sérgio Hacker e o chefe de gabinete dele na tarde desta quinta (4), mas não conseguiu contato. Ele não falou com a imprensa, nem mesmo através de advogados.
Sobrenomes de poder e dinheiro
Se Miguel Otávio possuía o sobrenome Silva na certidão de nascimento, os nomes Hacker e Corte Real associam o poder político em expansão nos municípios do litoral sul de Pernambuco ao poder econômico entre empresários do estado.
Sarí Mariana Gaspar adotou o sobrenome do marido, o prefeito de Tamandaré Sérgio Hacker (PSB), da terceira geração de uma oligarquia que começou seu avô, o filho de imigrantes alemães José Hildo Hacker, ex-prefeito de outros dois municípios da região, Rio Formoso e Sirinhaém. Sua mãe, Isabel, é a atual prefeita de Rio Formoso. O primo Franz é o prefeito de Sirinhaém. Essa é a linhagem de Sérgio Hacker por parte de mãe.
Caso fique comprovado que os serviços prestados como empregada doméstica pela mãe de Miguel ao casal eram remunerados pela prefeitura de Tamandaré, conforme denúncia do Jornal do Commércio, será mais um indício a sugerir que a família trata os bens públicos dos municípios que governa como negócios particulares. Desde 2018, a Receita Federal, a Polícia Federal e a Vigilância Sanitária estadual investigam as três prefeituras (Rio Formoso, Sirinhaém e Tamandaré) por fraudes de R$ 12 milhões na compra de remédios.
O sobrenome paterno Corte Real remete ao seu tio Jorge Corte Real, dono da construtora AB Corte Real, ex-deputado federal pelo PTB e ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco (Fiepe).
No cenário estadual, o marido de Sarí e sua sogra pediram votos que ajudaram a reeleger Paulo Câmara. Nos três municípios controlados pelo clã, o atual governador de Pernambuco obteve mais de 62% dos votos no primeiro turno em 2018. O principal vínculo da família é com o deputado federal Danilo Cabral (PSB), que deve muito aos Hacker-Corte Real: o parlamentar foi o mais votado nas três cidades, onde amealhou mais de 13 mil dos seus 91 mil votos.
Desde que o patriarca José Hildo entrou na política, no início dos anos 1990, os Hacker têm se mantido fiéis aos próprios interesses e ao governo – qualquer um. Quando Jarbas Vasconcelos era governador, entre 1999 e 2006, eram filiados ao MDB e jarbistas convictos.
Agora, enquanto apoiam o PSB, Sérgio Hacker e sua família também costumam ser vistos em companhia do líder do Governo Federal no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB). Em setembro do ano passado, o clã juntou-se para recepcionar o senador bolsonarista num aprazível café da manhã.
Mesmo com toda a comoção, o PSB local também não se pronunciou. O nacional, repostou nas redes sociais um post da Juventude do PSB, que diz que “o dolo, como se sabe, não é só quando se tem a intenção de matar. Mas quando se assume o risco de que uma determinada atitude pode terminar em morte”. O post não cita que o patrão da mãe de Miguel Otávio é filiado e prefeito pelo PSB.
O governador Paulo Câmara postou uma nota de condolências burocrática somente na noite da quinta. Disse que a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos entrou em contato com a família e que vai acompanhar o caso. “Investigação e esclarecimento devem acontecer no prazo mais breve possível”, finalizou.
Caridade para o Tennessee
Na manhã de quinta-feira, depois de uma enxurrada de comentários, questionamentos e xingamentos, tanto o prefeito de Tamandaré quanto a acusada Sarí Gaspar Côrte Real desativaram suas redes sociais. No perfil de Sarí, a publicação em modo público mais recente era ela solicitando doações a um hospital no lugar de presentes para o aniversário dela no ano passado. Mesmo sendo primeira-dama de uma das cidades com menor salário médio do estado, foi para um hospital nos Estados Unidos, o St. Jude Children’s Research, de Memphis, no Tennessee, que Sarí pediu as doações.
A ausência dos nomes dos patrões nas primeiras publicações e a retirada dos perfis do ar não adiantaram muito. O caso da morte de Miguel teve uma imensa repercussão nacional. Em um momento em que a luta contra o racismo causa protestos nos Estados Unidos e em capitais do Brasil, além de grande comoção nas redes sociais, a morte da criança entrou forte nesta discussão. Artistas e personalidades com milhões de seguidores se pronunciaram nas redes sociais pedindo por justiça, a exemplo das cantoras Anitta, Ludmilla e Iza.
A ativista Luisa Mell, com mais de quatro milhões de seguidores no Instagram, divulgou a manifestação que acontece hoje, às 15h, em frente às Torres Gêmeas. “Me ajudem a não deixar essa mulher ficar impune, porque ela é rica e influente”, escreveu. Ela foi além da postagem: entrou em contato com a família de Miguel e se ofereceu para pagar um advogado.
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