Não bebo. Não uso drogas, nem álcool, porque não gosto de sentir meu cérebro fora de controle.
A droga mais forte que usei foi com prescrição médica.
Uma dessas que se usa em baladas, não só em clínicas.
Tem um efeito lisérgico, que faz a gente entender os hippies que pregavam uma nova percepção da realidade, como explicava Timothy Leary.
Ou o Santo Daime.
Na hora que bate, você realmente compreende como a nossa compreensão do mundo é limitada pelo funcionamento normal da mente.
Imagine quantas cores existem e nossos olhos não conseguem ver.
Ou quantos timbres e subfrequências que nossos ouvidos simplesmente não são preparados para ouvir.
Drogas permitem uma pequena janela para enxergar outra realidade possível.
O Brasil de hoje é uma droga. Não o adjetivo. O substantivo.
Mas também nos dá uma nova percepção da realidade.
A cada dia que passa, temos novas sensações e vemos coisas que nunca vimos antes.
Como foi o caso do sábado passado, onde um grupo de neo-idiotas se reuniu com tochas diante do STF, entoando bobagens de ordem.
Ou no domingo, quando o presidente desfilou a cavalo entre seus seguidores.
Coisas que nunca veríamos num estado normal.
Nem num Estado normal.
Me fez lembrar meu pai.
Meu pai tem Alzheimer há muito tempo.
Ficou muitos anos com minha mãe, mas agora está numa clínica, porque precisa de atenção constante.
Sua saúde física é perfeita. Ele tem, afinal, um histórico de atleta.
Até os 75 anos nadava dois quilômetros todos os dias.
Mas sua percepção de realidade, infelizmente, está muito debilitada.
Apesar de há muito tempo não falar coisa com coisa, suspeito que compreenda o mundo a sua volta, apenas com outros limites, que a gente não consegue acessar.
Devido ao isolamento imposto pelo coronavírus, não pode receber visitas.
Então a clínica tornou disponível um celular, onde os familiares podem fazer chamadas de vídeo.
Outro dia liguei para o Totô, que é como toda família sempre o chamou.
Estava sentado num sofá e tinha acabado de jantar, apesar de serem 5h30 da tarde.
– Oi Totô! Tudo bem?
Ele demorou um pouco para entender o que eu estava fazendo dentro de um celular.
– Ah… oi… tudo sim… mas tem o coiso lá.
– Qual coiso, pai?
– O depósito está cheio. Começou seu monólogo.
– Qual depósito?
– Não pode.
– Ah! que bom. E o que você almoçou hoje?
– Hoje?
– É.
– Contei luzes.
– Que legal. Quantas luzes você contou?
– Umas dez. Por causa do gírus.
– Vírus?
– Isso.
– Você sabe que tem um vírus solto por aí, não é?
– Gírus. Tô cansado de gírus.
– Então descansa, pai. Que horas você vai dormir?
– Sete mil.
– Então tá. Durma bem!
– Você também, filho.
Esse “filho” final, me reconhecendo, foi a dica de que — quero acreditar — meu pai ainda tem alguma percepção da realidade.
Vive num mundo que para nós parece incompreensível.
Só que nesse seu mundo não existe Bolsonaro, Carluxo, Weintraub, Damares ou Sara Winter.
Alzheimer talvez seja só isso. Uma percepção lisérgica da realidade. Quem sabe, até, seja uma evolução e não uma doença.
Um mundo onde contar luzes e dormir às sete mil sejam coisas plausíveis.
E considerando a atual conjuntura do país, talvez os drogados somos nós.
Revista IstoÉ - 10 de junho de 2020
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