Máscara mortuária de Machado de Assis, no Instituto Histórico e Geografico Brasileiro / Crédito: Wikimedia Commons
No ano passado, a Faro editorial surpreendeu brasileiros diante da publicação da obra O homem que odiava Machado de Assis, de José Almeida Júnior, que já venceu o prêmio Sesc de literatura. O livro se destacou entre as outras obras já lançada sobre o gênio brasileiro. Além de misturar história e ficção em torno de um dos maiores nomes da literatura, o exemplar apresentou a primeira imagem de Machado de Assis negro em sua capa.
“Quando tomei conhecimento da campanha Machado de Assis real, promovida pela faculdade Zumbi dos Palmares, a capa de meu livro já estava na gráfica. Machado de Assis era mestiço, bisneto de escravos, mas sofreu um processo de embranquecimento ao longo do tempo”, revelou Almeida.
“Retratar o mais importante escritor brasileiro como negro é uma correção histórica, que garante às novas gerações conhecer o Machado de Assis real. Devido à importância da campanha, a editora interrompeu o processo de produção do livro e alterou a foto de Machado de Assis na capa.”
Acontece que, por mais que muita gente lembre Machado como branco, e tenha se convencionado representá-lo assim, muito se debate sobre o tema e a maioria das falas conceituadas afirmam que o escritor era preto, inclusive de pele retinta.
Embranquecimento
A primeira vez em que o Bruxo do Cosme Velho foi tratado como branco foi em sua morte. O obituário do escritor, que faleceu em 1908, o classifica como “branco”, enquanto sua máscara mortuária possui claros traços que se associam a características de afro-brasileiros. Depois, com a fama do autor e disseminação de obras durante a República Velha, sua imagem foi reproduzida de maneira embranquecida.
“O maior escritor da literatura brasileira era um homem negro”, reiterou Ana Flávia Magalhães Pinto, da UnB. A batalha narrativa pela representação da pele de Machado tem grande peso, principalmente por incluir entre os fatores a forte herança do racismo do século 20.
Por anos, o tema foi tratado como menor, até que, em 1957, o escritor Rubens Magalhães Jr, divulgou uma fotografia polêmica que teria sido feita no final da vida de Machado. Descrita como “sem retoques”, ela mostra o autor com pele escura e traços africanos, o que chocou, pois era justamente aquela imagem que fora muitas vezes usada, após edições de cor, como prova de que ele era um homem branco.
Movimentos de pauta racial se apegaram à questão e fizeram dela uma bandeira de respeito à ascendência cultural dos negros no Brasil. O embranquecimento de Machado de Assis, ofensivo, era uma forma de ignorar o papel dos afro-brasileiros na construção da literatura nacional (sendo que Machado é, com poucas ressalvas, o maior escritor de nossa história). O debate se acalorou, e a pauta dos movimentos negros se fortaleceu, finalmente, em 2018.
A foto desconhecida
Isso porque, naquele ano, uma inédita fotografia de Machado de Assis foi encontrada pelo pesquisador Felipe Rissato. Ela estava numa edição de Caras y Caretas, uma revista argentina, e mostrava o autor de pé num jardim, sendo visível uma pele retinta e traços faciais negros. Isso apenas fortaleceu o argumento de que Machado era afro-brasileiro.
“Não há texto ou registro algum de Machado em que ele diz ser branco. Ainda assim, por causa do nosso racismo institucional, a elite sempre fez de tudo para apresentá-lo como tal”, afirma o pesquisador da UFMG Eduardo de Assis ao portal Geledés. Mas, para ele, “esse é um debate que ainda vai durar por muitas gerações”.
As representações de Machado como branco nunca cessaram, o que deu origem a um movimento virtual capitaneado pelo portal machadodeassisreal.com.br, que fornece ao público a mais famosa fotografia do escritor, colorizada e representando ele como preto, para que leitores substituam as imagens embranquecidas pela forma mais verossímil nos livros.
“esse resgate é importante porque ele permite que todos possam se apropriar do que é o personagem, essa personalidade, na sua autenticidade, na sua apresentação genuína. Essa pele escura, essa sua antecedência de filhos e filhas de negros escravos, ela foi ficando e se perdendo pela História”, afirmou José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, em entrevista à Band.
A fotografia de Caras y Caretas foi, então, submetida a análises por parte do historiador Joaquim Marçal, curador da Brasilianas Fotográfica da Biblioteca Nacional. Para ele, as variações de luz do local dificultam uma resposta, pois há partes em que a pele parece mais clara que outras. Porém, ele concluiu pelos traços gerais que é possível afirmar que ele era um homem de pele escura, muito mais do que a maioria de seus retratos.
Ele colocou: “Usando a luz, tudo é possível para um fotógrafo, inclusive afinar um nariz [em referência à fotografia divulgada pelo fotógrafo Insley Pacheco]. O retoque pode ter até acontecido, inclusive como um acordo tácito entre Machado e Pacheco, mas não há como saber ao certo”. Porém, ele lembra que a imagem está com uma qualidade bem baixa.
O irônico Bruxo
É importante lembrar que a obra inteira de Machado é composta de uma capacidade de crítica gigantesca, e seu principal alvo é o racismo e o escravismo da sociedade imperial. Com ironia e sarcasmo, ele retratou o encobrimento das relações senhoriais dessa mesma maneira: com a sutileza enganadora. Neto de africanos alforriados e filho de pardos, ele tinha conhecimento direto da vida infeliz da escravidão, e buscou a ascensão social (pois nascera numa área pobre do Rio de Janeiro) pela cultura erudita.
Por último, vale citar novamente a professora Magalhães Pinto, que afirma que os esforços de retratar Machado como branco: “demonstram como a violência racial tem organizado até mesmo as políticas de memória sobre a história do país e de sua gente. O embranquecimento de Machado é produto da apropriação da sua memória por parte de homens que o queriam branco, para legitimar um projeto de país em que pessoas negras seriam apenas resquícios de um passado que se queria esconder e quiçá esquecer”.
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