No tempo que os homens falavam (*) dizia-se que a regra para encantar uma mulher considerada feia seria elogiar sua beleza, já com uma mulher tida como bela, infalível seria elogiar sua inteligência. Mas esse tempo, felizmente, passou. Bonito, feio, inteligente e burro são conceitos voláteis com significados dependentes dos variados pontos de vista. Sobrevive, porém, a mania de tentar definir a condição humana com rótulos reducionistas. Ainda colocamos todo o peso do conhecimento interpessoal na ilusão de que somos psicólogos altamente treinados para ler as mentes uns dos outros. Isso explica o triunfo dos rótulos.
Neofascista, neonazista, liberal radical, comunista, socialista, machista, feminista… Basta um desses rótulos e dá-se por decifrado todo o intrincado e mutante dinamismo da vida. Tudo bem que na rispidez das trocas de socos a 280 caracteres por segundo no Twitter, um rótulo ajuda bastante acertar o nariz do oponente. Mas no cotidiano, no quase nada que sobrou de contato humano — o que, na piada da hora, explicaria a lenta propagação do coronavírus fora da China — os rótulos são perniciosos. Deveriam ser evitados em benefício da esquecida arte da conversação.
Como deixar de falar com alguém que sempre admiramos porque, como disse com a genialidade de sempre o economista Delfim Netto, votou em Bolsonaro “em legítima defesa”? Ou simplesmente bloquear uma pessoa como @beruta, que no Twitter se define como, “médica, cearense, esquerdista, progressista, feminazi”. Pois essa feminazi conta como atendeu no pronto-socorro, em um fim de semana, um paciente jovem, negro, baleado na cabeça, enquanto ouvia na sala da emergência comentários desumanos: “Se foi a polícia que trouxe é bandido”… “Você vai tentar salvar isso aí?” Não era bandido. Ele tinha ido à casa da avó buscar um documento de que precisaria na segunda-feira, seu primeiro dia de trabalho. Foi baleado por traficantes que o confundiram com integrante de facção rival. O paciente morreu. A resposta dela para os colegas foi: “Sou médica e cuido de pacientes. Se quisesse julgar as pessoas teria estudado Direito e feito concurso para juíza”. Uma pessoa assim não cabe dentro de um rótulo.
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“Nós pensamos que somos ótimos juízes do que os outros estão pensando. Não somos. De fato, somos péssimos nisso”, diz Scott Adams, criador do Dilbert, o famosopersonagem de tiras sempre confinado em um cubículo — no Brasil sai em edições de bolso da editora L&PM. Adams acaba de publicar um novo livro nos Estados Unidos com o título intraduzível “Loserthink”, expressão criada pela união das palavras loser (perdedor) e think (pensar) para definir o modo irracional de leitura de caráter desses tempos de politização turbinada.
Scott diz que 90% das críticas que recebe de pessoas estranhas embutem alguma forma de adivinhação do como ele deve estar pensando. “Uma rápida verificação do meu feed do Twitter mostra um estranho dizendo que sou defensor da mentira, outro tem certeza de que apoio neonazistas, um terceiro diz que só quero ‘vender livro’ e, mais adiante, um quarto assevera que apoio o Trump, seja qual for a fala ou atitude dele. Bem, nenhuma dessas afirmações é verdadeira. Elas são fruto de estranhos acreditando que podem enxergar além das minhas palavras reais para adivinhar meus pensamentos secretos.”
De uma maneira ainda mais direta, o professor Claudio de Moura Castro explicou há pouco tempo o mesmo fenômeno: “O analfabeto emocional é aquele que sabe ler, mas é presa das emoções para entender o texto. Em vez de usar a razão, faz leitura ‘criativa’, embalada pelo sentimento e pela paixão. Decifra o texto por via de uma reação pura e espontânea, ignorando os estreitamentos de significado imposto pelo sentido rigoroso das palavras escritas.” Concordo. Se sua opinião depende da ilusão de ser capaz de adivinhar os pensamentos e os sentimentos mais profundos de um estranho, são enormes as chances de estar errado.
(*) Essa ironia em torno da expressão “no tempo que os bichos falavam” deve me atrair diversos rótulos. Talvez tivesse sido mais seguro ter escrito “no tempo que os homens podiam falar bobagens à vontade”.
Fonte: “O Globo”, 8/2/2020
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