18/11/2018
FONTE - O GLOBO
Negro, cubano e médico
Assustados, se viram obrigados a passar por um corredor humano de colegas de profissão brasileiros que os chamavam de 'escravos'
Cinco anos atrás, esta coluna focou em um episódio lateral ao Programa Mais Médicos. Reproduzimos hoje o texto publicado em 1º de setembro de 2013 para cutucar a questão racial embutida na chegada/partida dos cubanos. Tudo a ver com o feriado do Dia da Consciência Negra:
"(...)Vale esmiuçar uma foto estampada na primeira página da "Folha de S.Paulo" desta terça-feira. A imagem mostra, em primeiríssimo plano, um homem de estatura forte e fisionomia tensa. Sua linguagem corporal é defensiva. Ele mantém o olhar fixo em algum ponto morto, talvez para evitar contato visual com a hostilidade à sua volta, e sua alegre camisa amarelona, xadrez, destoa do ambiente carregado. Ele é negro, cubano e médico.
O episódio ocorreu em Fortaleza, no fim do primeiro dia de treinamento dos 96 recém-desembarcados estrangeiros (79 dos quais cubanos) do Programa Mais Médicos. No Ceará, onde 701 dos municípios foram preteridos por profissionais brasileiros, o Sindicato dos Médicos estadual decidira protestar contra a contratação de cubanos e cercara a Escola de Saúde Pública da cidade, onde se realizava o curso. Houve tumulto, empurra-empurra, ovo voando.
Ao fim daquela aula inaugural, os cubanos assustados se viram cercados e obrigados a passar por um corredor humano de colegas de profissão brasileiros que os chamavam de 'escravos', 'incompetentes'. Palavras de ordem como 'Voltem para a senzala' foram entoadas contra os estranhos ao ninho.
O flagrante de Fortaleza traz à mente outra foto captada 56 anos atrás em Little Rock, no estado do Arkansas. Mostrava duas adolescentes de 15 anos, também anônimas até então. Uma, de vestido branco engomado, negra e reservada, chamava-se Elizabeth Eckford. Selecionada para testar a ordem judicial de integração racial daquele ano de 1957, teve o acesso barrado por soldados armados da Guarda Nacional à sua frente. Às suas costas, uma pequena multidão lançava-lhe xingamentos de 'Vamos linchá-la', 'Dá o fora, macaca'. Uma senhorinha branca a quem pediu ajuda lhe cuspira no rosto.
Tentou escapar daquela ratoeira sem correr, apertando contra o peito um fichário e um livro escolar, e com o medo escondido atrás dos óculos escuros. Tinha no encalço um séquito hostil encabeçado por três inflamadas garotas brancas.
Uma delas foi captada pelo flash de um fotógrafo no instante em que gritava 'Vai pra casa, nigger. Volta para a África'. Era Hazel Bryan, coquete e popular colegial da escola segregada. A foto a mostra de olhos e sobrancelhas contraídos, com a boca contorcida pela raiva.
Assim, por mero acaso e apesar da pouca idade, as duas foram catapultadas para a notoriedade - Hazel como o retrato do ódio racial, Elizabeth, o da determinação. O flagrante do episódio cearense difere em quase tudo do caso que entrou para a história dos direitos civis americanos - na natureza, no significado, na dimensão, na consequência. Aproximam-se apenas por humanizarem de forma indelével um noticiário até então sem rosto.
No caso de Little Rock, as duas protagonistas eram meninas que repetiram em público o que aprenderam em casa. No caso de Fortaleza, são todos adultos - o cubano negro, assustado, mais tarde identificado como Juan Delgado, de 49 anos, que já trabalhara quatro anos no Haiti - e as duas médicas brasileiras retratadas aos apupos.
Segundo dados do Censo de 2010, somente 1,5% dos médicos brasileiros se autodenomina negro e 13,4% se autoclassificam como pardos. No cômputo geral dos mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros, 50,7% se autodeclaram pretos ou pardos."
Atualizando os dados para os dias de hoje: 55,4% dos brasileiros se autodeclaram negros ou pardos. No funcionalismo público, os médicos negros são apenas 17,6%. Este é um dos retratos do Brasil.
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