domingo, 11 de junho de 2017

Artigo de Opinião - Câncer e politização - Gustavo Fernandes

Há dois anos, o Brasil tem vivido um período de graves problemas políticos, econômicos e, consequentemente, sociais. Em decorrência disso, todos os serviços do governo foram prejudicados e sofreram cortes generalizados. Dentre as inúmeras restrições nos recursos destinados para saúde, educação etc., foram reduzidas as verbas do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos (SP), onde há décadas eram produzidas pílulas de um composto referido por alguns como milagroso: a fosfoetanolamina sintética.


O que aconteceu daí por diante todos pudemos acompanhar: um dilúvio de revolta popular, com intensa cobertura da mídia e uma atuação política sem base técnica e científica de parte do Congresso e do Executivo. Finalmente, o Supremo Tribunal Federal — vejam onde foi parar o assunto — decidiu suspender as liminares que eram concedidas aos milhares aos pacientes que solicitavam o acesso à substância, até que estudos clínicos minimamente suficientes fossem apresentados.

Esse episódio conta muito sobre como as situações são gerenciadas em nosso país. Por anos, uma substância foi distribuída como medicamento, com verbas públicas, sem nenhum dado de segurança. Apesar dos 30 mil pacientes “tratados”, os conselhos e as sociedades de medicina e farmácia nunca se pronunciaram contra seu uso, assim como a USP e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Quando a crise econômica chegou, nenhuma grande mobilização foi montada para recuperar as verbas dos hospitais públicos ou da Farmácia Popular. Mas milhares de pessoas, acompanhadas por dezenas de políticos, foram capazes de mover o país contra os médicos que, segundo os ativistas, vivem da doença alheia e contra as entidades que, embora atrasadas, procuraram corrigir o mal.

Já em 2017, sentindo que os dados científicos não suportariam qualquer tipo de uso médico da “fosfo” (ficamos íntimos), os responsáveis pela substância resolveram que ela deveria seguir carreira como suplemento, posto que a vida como medicamento não estava fácil. Divulgados os dados clínicos, claramente negativos, ninguém — nenhum dos parlamentares inflamadamente favoráveis, nenhum daqueles que defenderam o uso da substância — se desculpou com as famílias daqueles que perderam sua oportunidade de tratamento e de vida para embarcar em um barco de esperanças irreais que seduz a nação vez em quando.

Pessoalmente, o caso “fosfo” me rendeu quilos e cabelos brancos a mais, visão externa da alma ferida pelas ofensas que nós, médicos, ouvimos por defender o certo e por um consultório mais tenso do que habitual, com pacientes desconfiadamente questionando nossas verdadeiras motivações. Isso doeu, mas passou. E o amor pela vida humana que nos faz cuidar do sofrimento alheio não nos deixa ter rancor.

Como brasileiro, médico de pacientes com câncer, vendo o quão dura a vida pode ser, me desculpo por não ter me insurgido antes contra essa promessa que iludiu pacientes e famílias por mais de uma década em todo o país. Aprendamos a ser mais intolerantes com o que parece errado. E vamos em frente.

Gustavo Fernandes é presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica



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