O preconceito racial no país é disfarçado sob camadas e camadas de sorrisos benevolentes
WALCYR CARRASCO
25/10/2016
Dia desses fui ao restaurante Satyricon, no Rio de Janeiro, um dos melhores em peixes e frutos do mar no país. Movimento, som de conversas alegres, risadas. Olhei em torno. Todas as mesas ocupadas por brancos. Negros, em nenhuma. Outro dia, fui ao shopping Village Mall, de grifes de luxo, também no Rio. Não havia nenhum negro passeando nos corredores. Nem mesmo vi um entre os vendedores. Vi um, sim. Era o faxineiro do toalete.
A mesma situação em São Paulo, onde vivo sempre. Muito, muito raramente vejo um negro sentado às mesas dos restaurantes mais sofisticados. No máximo, afrodescendentes entre os garçons. Em shoppings de ponta, como o Iguatemi e o Cidade Jardim, juro, não me lembro de ter visto. Posso incluir outros shoppings, como o Higienópolis, o Morumbi e o Paulista. A presença de negros entre os compradores é rara, raríssima. Pior: entre os vendedores, a mesma constante. São brancos que vendem para brancos. Há anos escrevi um livro, Irmão negro, onde um garoto é pego por um segurança do shopping, quando experimenta um boné. Suspeito por ser negro. Na época, achei que pudesse estar exagerando. Anos depois, vejo que não. Qualquer menino negro desacompanhado provavelmente seria encarado como suspeito nesses lugares.
O país ficou estarrecido com as ondas de racismo, quando as atrizes Taís Araújo e a apresentadora Maju foram atacadas pela internet. O motivo do choque: nos orgulhamos de não ser um país racista. Ah, por favor! O preconceito no país é disfarçado sob camadas e camadas de sorrisos benevolentes. Eles não são proibidos de entrar. Nós todos nos orgulhamos de ter leis antirracistas. Negros podem frequentar qualquer lugar. Só que não têm dinheiro. Nem oportunidades, eis tudo. A discriminação racial se confunde com a social. Contra pobre, nem se esconde. Está à vista de todos, nos prédios. Há o elevador social e o de serviço. Mas o que diferencia quem toma qual? Se uma arquiteta de interiores for refazer a decoração de um apartamento, ela tomará o de serviço, toda loura e perfumada? Não. Alguém pode me explicar por que a empregada não pode usar o mesmo elevador do patrão? Não seria mais fácil botar, em vez de “elevador de serviço”, “elevador para pobres”? Está aí, em qualquer prédio. E que dizer do famoso “banheiro de empregada”, item essencial até em apartamentos onde os espaços são contados em centímetros? É sempre um cubículo onde também são guardados as vassouras, os baldes. Onde a funcionária se espreme. Por que motivo a empregada não deve usar o mesmo banheiro do patrão? É como se fosse portadora de uma doença contagiosa. Mas todos nós agimos como se isso fosse normal. Não é.
Há algumas noites eu estava na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, no meu carro, parado no sinal. Atrás um outro carro com duas senhoras louras. Do meu lado, na janela do ônibus, uma senhora negra. Olhei a linha: Socorro-Lapa. Atravessa meia cidade. Ela estava lá, cansada, apoiada na janela. Eis tudo, a diferença.
Não sou pesquisador demográfico. Podem me trazer números, provando isso e aquilo. Minha visão é particular. Saio pouco, vivo no meu mundinho, muito isolado como todo escritor. Esses fragmentos que enxergo não têm valor? Para mim têm muito, sim. Há uma situação permanente de discriminação. No modo de vida, na arquitetura, nas oportunidades. Do que adiantam leis? A discriminação é praticada de maneira surda, constante. Nas principais universidades do país, são raros, na bancada de ensino, os professores afrodescendentes. Existem, mas são minoria. No Supremo Tribunal Federal não há ministro negro. Havia, Joaquim Barbosa, que foi fundo no mensalão. Aposentou-se. Nos centros de poder econômico e político. Quantos negros?
Entre os alunos das universidades a situação começou a mudar, com a implantação de cotas. Muita gente é contra as cotas. Mas como mudar sem oferecer oportunidades através da educação?
Também sempre me perguntam sobre a falta de papéis para negros na televisão. Muitas vezes, confinados a serem serviçais. Muito mudou. Já vemos programas como Mr. Brau, com Taís Araújo e Lázaro Ramos. Mas ainda falta. Como autor, creio, sim, que é possível promover avanços através da arte. E me orgulho de ter lançado a primeira novela com protagonista negra, Xica da Silva, na antiga TV Manchete, há 20 anos, com a mesma Taís. Mas constato. A discriminação fala mais forte, nos detalhes mínimos de nosso dia a dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário