sexta-feira, 5 de maio de 2017

Crônicas do Dia - O mundo é um moinho - Ana Paula Lisboa



Mulheres que precisam sair da escola cedo não podem desenvolver um país


Ainda na adolescência, numa aula, recebemos como tarefa levar uma música para a turma inteira ouvir e discorrer sobre ela.

Acho que foi Luana. Sim, foi Luana quem levou um CD do Cartola, cumprindo sua tarefa. Confesso que Luana me deixou surpresa; apesar de eu adorar Cartola, eu preferia a versão do Cazuza e achava que todo jovem deveria preferir. Mas ela amava Cartola. Algo parecido com o “menino fã do Raça Negra”.

— Mas por que você escolheu essa música, Lu? — perguntou a professora.

— Minha mãe me contou que ele fez essa música para a filha que queria sair de casa com 16 anos. Um dia a gente brigou, e ela cantou essa música pra mim. Aí virou a nossa música.

É bom quando os alunos também dão aula. Quando o mestre-professor decide assumir o lugar de mediador entre o que já existe no mundo e nós — os aprendizes.

Talvez eu já tenha dito por aqui — já são 12 meses de colunas! — algo que meu pai fazia questão de dizer a mim e a minha irmã mais nova: “Não importa o que aconteça, vocês não vão sair de casa pra morar com qualquer um”. Traduzindo, “não engravidem, mas, se engravidarem, eu estou aqui, não precisa casar”.

Talvez para você isso pareça muito natural, mas TODAS as minhas primas foram colocadas pra fora de casa quando engravidaram ou perderam a virgindade. E para onde elas iam? Normalmente ocupar um quarto na casa do digníssimo que havia lhes “feito mal”.

Meu pai, como Cartola, era o homem preto que dizia pra gente não ir, afinal, o mundo é um moinho. Mesmo assim, a gente foi.

Eu me casei aos 21 anos e, apesar de todo o planejamento, era clara uma pressão religiosa. É que crente, para transar sem pecar, precisa casar! E tudo o que eu queria era gozar em paz.

Uma amiga feminista, um tanto decepcionada com o meu casório, me disse: “Não vá colocar o sobrenome dele, isso é uma afronta nos dias de hoje”.

Achei que não deveria mesmo, não por conta do feminismo, mas porque daria muito trabalho mudar todos os documentos para o nome de casada. Ele aceitou. Anos mais tarde, quando nos separamos, essa questão foi levantada com certo rancor: “Você nem quis ter meu nome!”

Minha irmã se casou aos 19. Grávida.

No último dia 9, o Banco Mundial lançou o relatório “Fechando a brecha: Melhorando as leis de proteção à mulher contra a violência” e revelou que o Brasil ocupa a quarta posição em número de casamentos infantis no mundo. Na América Latina, somos o número 1! Isso significa que 36% da população feminina em território nacional se casa antes dos 18 anos.

Juro que o meu primeiro questionamento não foi o número, foi o motivo de o BIRD — Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento — ser o responsável pelo relatório. E o próprio relatório responde: mulheres que apanham não podem desenvolver um país, mulheres que precisam sair da escola cedo não podem desenvolver um país, mulheres que são humilhadas não podem desenvolver um país, mulheres que engravidam cedo e não têm com quem deixar seus filhos não podem desenvolver um país, mulheres que não podem trabalhar por conta de ciúmes de seus parceiros não podem desenvolver um país, mulheres que são exploradas sexualmente não podem desenvolver um país, mulheres que morrem no parto por não terem o corpo desenvolvido não podem desenvolver um país.

A gente se choca com casamentos de crianças em lugares da África e da Ásia, porque, afinal, lá elas são forçadas e aqui “é uma escolha das meninas”. O natural da mulher não é cuidar da casa, educar os filhos e fazer as compras no supermercado para ajudar a desenvolver a economia brasileira? Quanto mais cedo, melhor!

A naturalização do papel da mulher faz com que essas meninas saiam de casa tão cedo. Sair de casa é deixar de ser um peso, de ser mais uma boca, sair de casa é ser independente, sair de casa é poder transar em paz, sair de casa é deixar de ser abusada.

Mas na maioria das vezes não é.

Eu acho que também já falei aqui sobre os números terem nome e sobrenome. Falar de meninas que estão em relacionamentos abusivos é falar das minhas primas, é falar das minhas alunas, é falar das minhas amigas. Uma delas, aos 18 anos, depois de três anos de casada — sim, ela se casou aos 15 — eu pude abrigar e abraçar neste fim de semana. O marido, de 31 anos, a colocou para fora com a roupa do corpo.

Propus a ela que fizéssemos um mapa juntas e cada uma colocaria 20 coisas que gostaria de fazer daquele momento até os próximos cinco anos. Os sonhos e desejos dela eram poucos e sempre precisavam de companhia, como se fazer algo sozinha fosse impossível.

Na segunda-feira minha amiga resolveu voltar para casa, depois da pressão da família, que se apressou em defender e justificar os atos do marido. Ele foi até a casa da sogra chorando e prometendo mudança. Eu, com o coração apertado, e ela, com o coração esperançoso, assim nos despedimos no telefone. “Obrigada por tudo, mas eu acho que vai dar certo.”

Ao desligar, cantarolei: “Preste atenção, o mundo é um moinho...”



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