O Brasil é um país que, além de ler pouco, lê mal. É o que mostram os resultados de diferentes instrumentos de avaliação, tanto estrangeiros quanto nacionais. Em 2000, por exemplo, o Brasil participou pela primeira vez do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), que reuniu estudantes (todos entre 15 e 16 anos) de 32 países. Nossos jovens obtiveram o último lugar. Mais da metade deles ficou entre os níveis 1 e 2 de leitura (num total de 5 níveis), isto é, mal conseguia reconhecer a idéia principal de um texto, extrair informações que podiam ser inferidas, estabelecer relações entre um texto e outro, ler gráficos, diagramas, etc. Nos programas nacionais de avaliação escolar, os resultados não são diferentes. Tanto o Enem quanto o Saeb, em relatórios de 2004, apontam que 42% dos alunos da 3ª série do ensino médio estão nos estágios “muito crítico” e “crítico” de desenvolvimento de habilidades e competências em Língua Portuguesa, com dificuldades principalmente em leitura e interpretação de textos. Do total de alunos avaliados, apenas 5% dos alunos alcançam o nível considerado adequado de leitura, que consiste em, por exemplo, entre outras operações, ser capaz de num texto estabelecer relações de causa e conseqüência, identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados, efeitos de sentido decorrentes do uso de uma palavra, de uma expressão ou da pontuação. Diante desse quadro, cabe perguntar: quais as causas dessa situação? O jovem brasileiro não gosta de ler? Que fatores socioculturais e escolares têm responsabilidade sobre esses resultados? E mais: o que pode ser feito a curto prazo para mudar esse quadro? Não é absolutamente verdade que as crianças e adolescentes não gostem de ler. A onda esotérica provocada pelos livros de Paulo Coelho que seduziu os jovens a partir do final da década de 1980 e a atual mania Harry Potter são a prova disso. Evidentemente, não há uma causa simples que explique o problema nem uma solução mágica que o resolva. Diferentes aspectos estão relacionados com esses resultados, como o hábito e a valorização da leitura em casa, o papel da televisão e da Internet na vida contemporânea, o preço do livro, a formação dos professores e sua concepção de leitura, as práticas de ensino de leitura, a qualidade das obras selecionadas pela escola, o tipo de ensino que se faz da literatura no ensino médio, as listas de obras literárias indicadas pelos exames vestibulares, etc. Tomemos alguns desses aspectos para exame. Historiografia literária ou leitura de textos literários? Depois de fazer, no ensino fundamental, um percurso de pelo menos oito anos de leitura de textos variados, o estudante passa a ter, no ensino médio, contato com o estudo sistematizado de literatura brasileira. O lógico e desejável seria que, com uma carga horária escolar que varia entre uma e três aulas semanais, os alunos nesse tempo desenvolvessem suas habilidades de leitura – aquelas que foram observadas nos sistemas de avaliação -, tomando como base textos representativos de nossa literatura. No entanto, não é bem isso que ocorre. O ensino de literatura no Brasil tem sido feito pela perspectiva da historiografia literária. Isto é, em vez de o aluno aprender a ler textos literários, passa os três anos do ensino médio aprendendo a situar os autores e obras na linha do tempo, a identificar a estética literária a que pertence, etc. E isso não é recente. Nos planejamentos escolares do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, por exemplo, a história da literatura começou a fazer parte do programa escolar em 1858. Pondo por terra a tradição do ensino da Retórica e da Poética – disciplinas originárias de uma longa tradição humanista de educação trazida pelos jesuítas e que tinham como finalidade ensinar a falar e escrever bem -, a vitória da historiografia literária está relacionada com as necessidades daquele momento histórico: o nacionalismo romântico, o sentimento de lusofobia e a necessidade de construir e definir uma cultura nacional com base na língua, na literatura e na etnia. Assim, os primeiros historiadores da literatura nacional cumpriram a missão de definir o cânon literário – o conjunto de autores e obras representativos de nossa literatura – e, desde então, os professores secundários há mais de um século vêm ocupando seu tempo escolar resumindo obras, dissecando a literatura em gerações, fases e características, como se isso fosse, por si só, suficiente para o desenvolvimento de habilidades de leitura do estudante. A leitura de textos propriamente dita, nesse tipo de abordagem, toma um lugar secundário, quase ilustrativo da história literária. Não bastasse a abordagem enciclopédica que herdamos do século XIX, ainda perdura o enfoque nacionalista e xenófobo de nossa produção literária. Um exemplo claro disso são os conteúdos do programa de literatura, restritos a autores e obras nacionais. Ora, por que, num curso de literatura brasileira, não podem ser estabelecidos cruzamentos e relações com autores de outras línguas, literaturas e épocas, se os nossos escritores sempre estiveram abertos a influências estrangeiras? Vejamos um exemplo concreto: se perguntarmos a um jovem brasileiro se ele gosta de poemas, ou dos poemas do romântico Álvares de Azevedo, talvez ele diga que não. No entanto, se fizermos uma pesquisa num buscador da Internet como o Google, entrando com a expressão “Lord Byron”, obteremos como resposta quase 3 milhões de links, muitos dos quais são blogs de adolescentes brasileiros. Isso quer dizer que, em todo o mundo, há um número considerável de interessados na obra desse escritor inglês. E esse interesse não vem de hoje. O poeta romântico brasileiro Álvares de Azevedo, por exemplo, tomava Byron por ídolo e muitas vezes o citava em seus versos. Portanto, se um professor de literatura vai estudar com seus alunos a obra de Álvares de Azevedo, nada mais natural que estabeleça vínculos entre o conteúdo programático (no caso, a obra de Álvares) e tudo aquilo que, sem artificialismos, se relaciona com a obra do poeta paulista e com o interesse dos adolescentes. Assim, em vez de se limitar a uma descrição da obra do poeta paulista, por que não estabelecer um “diálogo” entre os dois poetas, promovendo uma leitura comparada de seus textos? E indo além: por que não relacionar também a produção dos dois poetas com a ampla tradição gótica na literatura, que também inclui outros importantes escritores como Baudelaire, Edgar Allan Poe, Oscar Wilde e Augusto dos Anjos, entre outros? E ainda: por que não estender esses diálogos a outras artes e linguagens, como o cinema expressionista alemão de Drácula, com Bela Lugosi, o Nosferatu, de Werner Herzog, ou o recente A noiva cadáver, de Tim Burton e Mike Johnson? Ou com as manifestações góticas no rock a partir da década de 1970, como os trabalhos de The Doors, David Bowie, T-Rex e outros? A literatura é um fenômeno artístico e cultural vivo, dinâmico, complexo, que não caminha de forma linear e isolada. Os diálogos que ocorrem em seu interior transcendem fronteiras geográficas e lingüísticas. Ora, se o percurso da própria literatura está cheio de rupturas, retomadas e saltos, por que o professor, prendendo-se à rigidez da cronologia histórica, deveria engessá-la? Quando se propõe uma perspectiva dialógica para o trabalho com a literatura brasileira, não se pretende desprestigiar nossas tradições, nossa cultura nem nossa formação étnica e lingüística, mas, sim, perseguir os diálogos travados por nossa literatura, com ela mesma ou com outras literaturas, e assim compreendê-la melhor e respeitá-la em sua historicidade. Nessa perspectiva, também não cabe o limite estrito do texto literário. Como força dinâmica do processo cultural, a literatura dialoga com outras artes e linguagens, às vezes tomando a dianteira do processo de mudanças, às vezes ficando à mercê de mudanças que ocorrem em outras artes. Sem perder de vista o objeto central – o texto literário -, na aula de literatura cabe a música popular, a pintura, o cinema, o teatro, a TV, o cartum, o quadrinho, a Internet. Cabem, enfim, todas as linguagens e todos os textos e mídias, ou seja, cabe a vida que com a literatura dialoga. A curto prazo, talvez consigamos – com uma postura menos purista do que seja o trabalho com a leitura do texto literário, que se abra para outras literaturas, mídias e linguagens – despertar nos jovens o prazer da leitura. Ao jovem leitor, não interessam as obras mortas do passado. Mas pode interessar tudo aquilo que, de alguma forma, dialoga com o presente e contribui para compreendê-lo melhor.
http://portuguescereja.editorasaraiva.com.br/por-que-o-jovem-nao-gosta-de-ler/
Nenhum comentário:
Postar um comentário