Quase 130 anos depois da Abolição, os herdeiros dessa população abandonada continuam em busca de oportunidades que não lhes dão
07/05/2017
Cacá Diegues, O Globo
Para melhor entender quem somos, é preciso saber de onde viemos, mesmo que a origem não confirme nossos sonhos. A recente exibição de “Terra em transe”, de Glauber Rocha, no Cine Odeon, celebrando os 50 anos de lançamento do filme, nos mostrou bem isso, com personagens e situações históricos que se repetem ao longo do tempo, até hoje. No caso, o Brasil vive plagiando “Terra em transe”.
Agora, no próximo dia 13 de maio, celebraremos 129 anos da assinatura da Lei Áurea, o documento formal que aboliu a escravidão no Brasil. E nós ainda nos iludimos com os mitos que cercam a Abolição, ainda tratamos o acontecimento com um lirismo patriótico que ele não merece.
O Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão, assim como foi um dos últimos países desse lado do mundo a entrar na era industrial. Uma coisa tem muito a ver com a outra. Da Independência à República, nossa economia se resumia a produtos agrícolas, da cana-de-açúcar ao café, sob o poder absoluto dos senhores de terras. A base desse sistema econômico era a escravidão, um costume social que encontrou no Brasil seu apogeu no Ocidente.
Mais de quatro milhões de negros, trazidos da África como escravos, serviram àqueles senhores como força de trabalho, desde o período colonial. As leis que precederam à Abolição, libertando os sexagenários e depois os recém-nascidos, não passaram de uma cruel esperteza dos que exerciam o poder de fato. Com essas leis, os barões latifundiários se livravam do sustento de velhos e crianças que, por não trabalharem, não tinham nenhum valor econômico para o negócio deles.
Quando a Abolição se tornou politicamente inevitável, eles ainda fizeram com que a Lei Áurea não os obrigasse a qualquer tipo de indenização aos ex-escravos, como havia acontecido recentemente nos Estados Unidos de Abraham Lincoln. Que cada liberto se virasse com o que tinha. Isso é, nada.
A imensa população de negros, agora livres, teve que escolher entre seguir servindo a seus senhores apenas por moradia (senzala) e alimento (restos), ou ir para as estradas em busca de mais nada. O governo os punha nas ruas, somente com o ilícito e o crime como recursos para sobreviver. Enquanto isso, no ano seguinte ao da Lei Áurea, os senhores de terras se vingavam da Abolição com um golpe de Estado que proclamava a República e lhes permitia seguir controlando o país. A oligarquia de sempre fazia sua passagem do Império para a República, sem mudar nada. Ou só mudando as aparências, a decoração do trono.
Quase 130 anos depois, os herdeiros dessa população abandonada continuam em busca de oportunidades que não lhes dão, tendo que encarar a violência para sobreviver no campo, nas periferias e nas favelas do país. E ainda devem ouvir, como ouviram esta semana, um secretário estadual de Segurança Pública dizer que a política de pacificação das UPPs foi “uma tentativa ousada demais (...) de levar a paz a todas as áreas, inclusive as mais carentes”. Ou seja, “carente” (?) tem mais é que se virar sozinho, na fome ou na porrada.
Mas foi essa população que, marginalizada e oprimida, produziu uma cultura que acabou por representar o Brasil como nação. Uma cultura inventada pelo raro milagre da mestiçagem.
O Brasil não é um país multicultural, onde cada manifestação de criação artística ou de hábitos sociais se passa num espaço reduzido que não se mistura com o outro. Não é isso o que queremos ser. Vivemos a experiência e a esperança de uma vida nova, em que a redenção dos herdeiros da escravidão está na mistura que sempre cantamos e almejamos praticar. Mulatos e mulatas são os nossos heróis preferenciais.
Em recente e brilhante ensaio, “Brasil, iluminai os terreiros”, o antropólogo baiano Antonio Risério diz que “sob a pressão do poder puritano branco, as religiões negras foram destruídas nos Estados Unidos. Por isso, Martin Luther King foi um pastor protestante e não um babalaô, senhor das práticas divinatórias de Ifá. (...) Lá, a destruição; entre nós, a sobrevivência. (...) Porque aqui a mescla foi total. Não houve apenas o fato biológico da miscigenação, mas o reconhecimento social e cultural das misturas, que é o que define a mestiçagem (...) Nossa mulataria é incontornável. (...) Combater o sincretismo é combater o que há de mais rico na vida, que são as trocas de experiências e de signos”.
Um dos mais belos momentos do cinema brasileiro contemporâneo está em “Joaquim”, filme de Marcelo Gomes (corram para ver, antes que a ignorância do mercado o tire de cartaz). Nele, em meio à vegetação do cerrado, uma jovem negra cata piolhos nos cabelos encaracolados do alferes, nosso futuro Tiradentes. Aí estão os elementos fundamentais da construção de nosso povo. Inclusive os piolhos.
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