Em uma canetada, três desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo ignoraram provas, debates e a reconstituição da mais grave violação de direitos humanos de pessoas sob custódia do Estado no Brasil. O massacre continua
por Maria Carolina Trevisan
“Não houve massacre.” Foi o que concluiu o desembargador Ivan Sartori em 27 de setembro, ao propor a anulação e a absolvição dos 74 policiais militares condenados pela morte de 111 presos na tarde de 2 de outubro de 1992, no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru. Passados 24 anos de uma das mais graves violações de direitos humanos do mundo, a 4a Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu por invalidar a única ação da Justiça de punir os responsáveis pelo extermínimo coletivo de cidadãos em privação de liberdade. Para Sartori, o que houve foi “a contenção necessária à imposição da ordem e disciplina”.
Durante todo o processo penal sobre o Massacre, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) notabilizou-se pela inação e por alterar as decisões condenatórias dos júris – instâncias soberanas – que deliberaram sobre a ação das polícias de São Paulo nas 13 horas que durou a invasão à Casa de Detenção. Esse mesmo tribunal foi também responsável por absolver o comandante da sangrenta intervenção, o coronel Ubiratan Guimarães, que foi condenado, em 2001, por júri popular a 632 anos de prisão pela morte de 102 das 111 vítimas no Carandiru.
Com direito a recorrer da pena em liberdade, Ubiratan se candidatou a deputado estadual por São Paulo nas eleições de 2002, com o número 11190, pelo Partido Progressista Brasileiro (PPB), de Paulo Maluf. A fama lhe rendeu 56.155 votos e o foro privilegiado. O órgão especial do TJSP, responsável pelo julgamento de parlamentares, o absolveu em 2006, entendendo que houve uma “rebelião” e que o coronel agiu “no estrito cumprimento do dever legal”. Não houve tempo para apreciação de tribunais superiores. Ubiratan foi assassinado em dezembro daquele ano, em circunstâncias constrangedoras, vestindo apenas toalha de banho.
O TJSP também agiu contra a reparação que o Estado deveria oferecer às famílias das vítimas. “O tribunal sistematicamente diminuiu os valores das indenizações das famílias das vítimas”, afirmam Maíra Machado e Marta Machado, professoras da Direito GV e autoras do livro Carandiru Não É Coisa do Passado: Um Balanço sobre os Processos, as Instituições e as Narrativas 23 Anos Após o Massacre (Acadêmica Livre, 2015). A Justiça sinaliza, dessa forma, que a vida de pessoas encarceradas não tem importância e que o Estado não é responsável pelo que ocorreu naquele 2 de outubro.
Em uma das sentenças que julgou improcedente o pedido de indenização das famílias, o juiz entendeu que houve “culpa grave dos próprios detentos pelo evento desastroso”, argumento comum nos casos em que a reparação foi negada – e semelhante ao que alegou o desembargador Sartori. Para esses magistrados, as famílias das vítimas do Massacre “não poderiam ter direito algum a qualquer indenização”.
Existem pelo menos 73 ações de indenização iniciadas pelos familiares – sobretudo as mães –das vítimas do Massacre do Carandiru. Pouco mais da metade foi julgada procedente. Dividem-se em “danos materiais”, que incluem os gastos funerários e uma pensão, e “danos morais”, que compensam financeiramente pelos sofrimentos impostos aos familiares das vítimas. Dos pedidos de indenização por danos materiais, o TJSP concedeu apenas 18. Para as demandas por danos morais, 58 casos foram julgados procedentes, revela a pesquisa – ainda inédita – Estado contra familiares de vítimas? O Massacre do Carandiru e os limites das ações judiciais de indenização em casos de graves violações de direitos humanos, dos pesquisadores Maíra Machado, Marta Machado, da Direito GV, e Anderson Lobo da Fonseca, do Programa Justiça Sem Muros, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. A maior parte das indenizações foi disponibilizada em 2011, quase 20 anos depois do Massacre. “Com isso, o Estado se omite de sua responsabilidade e legitima a violência policial”, afirma Maíra.
A principal justificativa para negar as indenizações por danos morais se baseia no que os magistrados entenderam como ausência de demonstração da mãe “ter sofrido com a morte do filho”. Por exemplo, no acórdão em processo judicial de Sandoval Batista Silva, uma das vítimas do Massacre, o desembargador alegou que sua mãe “nunca lhe enviou uma torta de frango, um copo de refrigerante. Que estranha dor moral essa que surgiu de repente! Não existe dor moral para quem se torna pessoa indiferente à sorte do filho”.
Calem-se
As tentativas de emudecer o Massacre e apagá-lo da história acontecem desde o primeiro minuto em que cerca de 350 policiais entraram na Casa de Detenção naquela tarde de 2 de outubro de 1992. O relatório enviado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2000, com a investigação feita por parlamentares da Assembleia Legislativa de São Paulo, revela uma série de ações de encobrimento dos fatos: os juízes presentes (que hoje aparecem como testemunhas de defesa dos policiais no voto de Sartori) foram impedidos de entrar nos pavilhões no momento da rendição, enquanto presos que testemunharam o início do Massacre continuavam a ser executados (a maioria das vítimas foi alvejada nos primeiros 30 minutos de ação); o sangue foi lavado do cenário das mortes; fotógrafos tiveram o acesso bloqueado; informações oficiais sobre policiais feridos foram exageradas; não foram feitas as provas balísticas; 13 armas de fogo foram plantadas e atribuídas aos detentos; os primeiros oito feridos leves encaminhados ao hospital foram, aparentemente, executados no trajeto.
Demorou muito para que o Massacre fosse divulgado. Na manhã seguinte, os jornais informaram a morte de oito presos em consequência de uma “rebelião”. O número real de mortos só foi comunicado à imprensa e aos familiares no dia 3 de outubro, às 16h30, meia hora depois de cerradas as urnas da eleição municipal realizada naquela data. Só em 4 de outubro as capas dos periódicos trouxeram a notícia correta.
Eleitores paulistanos escolheram Paulo Maluf (PDS) e Eduardo Suplicy (PT) para disputar o segundo turno da Prefeitura de São Paulo. Suplicy foi um dos primeiros a entrar no presídio após o Massacre. Maluf declarou ser admirador da Rota, tropa que mais matou na intervenção que levou ao Massacre. Em 15 de novembro, Maluf foi eleito prefeito da capital paulista com 58% dos votos contra 41,9% de Suplicy.
As tentativas de apagar a memória do Massacre seguem acontecendo. Em 2002, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) implodiu a Casa de Detenção e no lugar ergueu o Parque da Juventude, que não faz nenhuma menção aos mortos no Massacre. Um Projeto de Lei que tramita na Assembleia Legislativa propõe trocar o nome da estação de Metrô Carandiru para Parque da Juventude. “No Museu Penitenciário de São Paulo não há referência ao Massacre, a sala ‘Memória do Carandiru’ continua vazia”, alerta o professor de Direitos Humanos Guilherme de Almeida, da Faculdade de Direito da USP. “É fundamental o Estado brasileiro reconhecer a ocorrência de graves violações de direitos humanos por parte dos agentes estatais, como o caso do Carandiru. Enquanto isso não acontecer, não conseguiremos aprofundar a democracia no País”, completa.
Legítima defesa
Em seu voto para anular o complexo julgamento dos policiais militares e absolvê-los, o desembargador Ivan Sartori sustentou que eles cumpriram ordens superiores. Mas quem deu a ordem de invasão foi o coronel Ubiratan, que está morto. A outra autoridade que poderia responder pela ação da PM seria o então governador de São Paulo Luiz Antonio Fleury Filho, eleito pelo PMDB. À época ele alegou estar sem comunicação na hora da invasão (viajando em um helicóptero), mas afirmou que teria dado a mesma ordem. Portanto, o fim teria sido o mesmo. De qualquer forma, para Fleury, o crime prescreveu quando completou 20 anos. Nenhuma autoridade será jamais punida.
Um ponto importante na decisão de Sartori é o argumento de que os policiais deveriam ser julgados exatamente pelas mortes que cometeram, e não em blocos, como foi a solução adotada no julgamento. Cada grupo de PMs foi condenado pelo número de mortes que aconteceu em determinado pavimento. O único condenado pelos homicídios que cometeu foi o tenente-coronel Luiz Nakaharada. Ele era o chefe do 3o Batalhão, comandou 74 PMs com 13 cães. Pelo seu rosto oriental, foi reconhecido. Mas faleceu em 2013 de causas naturais, sem nunca cumprir pena.
“Como advogada criminalista, acho muito sério você não poder dizer quem atirou em quem”, alerta Luisa Moraes Abreu Ferreira, que acompanhou o julgamento e estudou os detalhes que o envolveram. “Tenho certeza que teve Massacre e tenho certeza que teve PM que executou. Tem gente ali no meio que certamente extrapolou qualquer tipo de função própria da Polícia Militar e deveria ser responsabilizada por isso. Mas por uma gritante ineficiência do Estado, não conseguimos saber quem é quem. Foi muito mal investigado. Você tem as armas, sabe quem usou cada arma e dá para fazer uma relação entre bala e arma”, afirma Luisa. Para ela, o que chama a atenção é justamente a 4a Câmara, à qual pertence o desembargador Sartori, defender esse argumento. “É surpreendente que tenha vindo de uma câmara criminal que não faz isso nunca. Então, demonstra um tipo de complacência do Judiciário com os policiais.”
No Tribunal de Justiça de São Paulo, a turma de Sartori é chamada pelos advogados de “câmara de gás”, justamente pela dificuldade de ter um recurso acolhido por esses desembargadores. “A Justiça de São Paulo, na maior parte dos casos, dá razão à Polícia Militar. A polícia sempre tem a sua palavra confirmada pelos tribunais superiores”, diz Paulo Sérgio Pinheiro, professor de Ciências Políticas da USP e ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso. Pinheiro também esteve no Carandiru logo depois da ação da polícia. Lembra da água vermelha empurrada com rodo pelas escadarias do Pavilhão 9 e das marcas de balas nas paredes. Evidentes sinais de que houve Massacre. “É espantoso ressurgir a tese de legítima defesa. Esses três desembargadores em uma penada foram contra tudo o que foi debatido, contra as provas que foram apresentadas em todos os julgamentos, na reconstituição do caso. E estão pouco se lixando sobre o que a sociedade brasileira pensa sobre essa decisão.” Para Pinheiro, a democratização da Justiça no Brasil está incompleta.
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