quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Crônicas do Dia - O silêncio dos claustros - Raphael Montes

O modelo de romance policial em que a vida do investigador ganha tanto destaque quanto a trama vem sendo festejado pelos leitores


“O silêncio dos claustros” é o terceiro romance da autora espanhola Alicia Giménez Bartlett no Brasil, porém seu nono romance policial na cronologia original. Sua série protagonizada pela inspetora Petra Delicado conquistou a Europa e os prêmios Raymond Chandler (2009) e Nadal (2011). Além disso, Bartlett foi eleita a escritora espanhola do gênero policial mais lida no mundo. Apesar da pouca fama em terras tupiniquins, não faltam evidências de que Bartlett é digna de uma chance em suas próximas leituras policiais.

Em “O silêncio dos claustros”, Petra busca desvendar o assassinato de um frade especialista em arte, enquanto este trabalhava na restauração de um corpo mumificado guardado no Mosteiro de Poblet, habitado por freiras. Não bastasse o crime, a múmia — supostamente sagrada — desapareceu. Petra e seu assistente Fermín Garzón, após a perplexidade inicial diante do que parece ser obra de um fanático religioso, passam a investigar terrenos históricos que lhes são bem pouco familiares. De surpresa em surpresa, até a inesperada solução do caso, a incursão de Petra Delicado nos domínios do silêncio nos leva a refletir sobre o que acontece muitas vezes perto de nós sem que possamos suspeitar.

Mais interessante do que a própria trama, que perpassa artes europeias e segredos da Igreja, merece destaque a personagem da inspetora Petra Delicado. Mulher de meia-idade, no terceiro casamento e madrasta de quatro crianças; Petra não tem papas na língua e gosta de beber seu uísque quando o trabalho permite. Bartlett explora com deliciosa leveza a vida íntima da personagem principal: os diálogos dela com as crianças; a firmeza com que Petra, ocupando cargo de destaque na Polícia Nacional, lida com o machismo da corporação; o convívio com o novo marido e a percepção de que sempre é possível aprender com novos relacionamentos. Esse modelo de romance policial em que a vida do investigador ganha tanto destaque quanto a trama principal vem sendo bastante utilizado e festejado pelos leitores, pois cria aproximação e intimidade com a saga do detetive.

Nesse mesmo caminho, outro espanhol de sucesso é Manuel Vázquez Montalbán. Além de uma produção variada e premiada com romances, biografias e ensaios, Montalbán (cujo nome inspirou o italiano Andrea Camilleri a criar o detetive Salvo Montalbano) escreveu uma importante série policial com seu detetive Pepe Carvalho.

Protagonista em obras como “Os mares do Sul”, “A Rosa de Alexandria” e “Milênio”, Pepe Carvalho é um personagem absolutamentente peculiar: é ex-comunista e ex-agente da CIA, sua companheira é uma prostituta, e seu grande amigo é Biscuter, que cozinha de modo fantástico e explica as receitas nos livros, deixando o leitor com água na boca. Ainda que suas tramas não sejam das mais surpreendentes, a viagem proporcionada pela escrita fina e cuidadosa do autor merece ser conferida.

A publicação de livros policiais de autores latino-americanos e espanhóis é muito interessante, pois, além de serem pouco conhecidas e comumente de elevada qualidade, tais obras apresentam uma realidade que se aproxima do leitor brasileiro. Em “O silêncio dos claustros”, por exemplo, estão presentes o descaso com moradores de rua, a força da Igreja Católica, a pressão da imprensa sensacionalista e a burocracia de uma polícia pouco eficiente. Bartlett não economiza ao fazer críticas à Espanha e, talvez por isso, sua sinceridade latente seja mais surpreendente do que a própria solução do mistério.

Pela editora Planeta, foram publicados outros dois romances com a inspetora Petra Delicado. Em “Tempo de cães” e “Ritos de morte”, além dos crimes bizarros, somos invariavelmente convidados a sentar num bar com Petra e seu assistente Fermín e, querendo ou não, acabamos pedindo um uísque e provando de um petisco gorduroso, mas imperdível. São livros para quem aprecia não só a boa literatura, mas também a boa mesa.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-silencio-dos-claustros-20298998#ixzz4Na7ha2L2

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