Ao cidadão atento e preocupado com a educação no Brasil, especialmente a básica, poderá perceber um processo de crescente desmanche do que a define pela Constituição Brasileira: um direto social e subjetivo. Para metade da juventude brasileira, em plena segunda década do Século XXI, nega-se a etapa final da educação básica, o ensino médio e os que o alcançam o fazem em condições precárias. Mutila-se, assim, a perspectiva de futuro tanto da cidadania ativa quanto as possibilidades de integrarem-se ao mundo do trabalho de forma qualificada.
Tão preocupante ou mais, tem sido o processo de desqualificar a educação pública, único espaço que pode atender ao direito universal da educação básica, pois o mundo privado é o mundo do negócio. Esta desqualificação não foi inocente, pelo contrário, abriu o caminho para a gestão privada ou com critérios privados da escola pública mediante institutos privados, organizações sociais, etc. E, mais recentemente, para se apropriar por dentro, com a anuência de grande parte dos governantes, da definição do conteúdo, do método e da forma da escola pública.
Junto com esse processo os “denominados especialistas” pela mídia empresarial de TV e revistas semanais, veem sistematicamente desclassificando a formação e o trabalho docente justificando o sequestro de sua função. Sem meias palavras, os docentes são concebidos como entregadores dos conhecimentos definidos por agentes “competentes” sob a orientação de bancos, associações e institutos empresariais.
Os arautos e mentores da “Escola Sem Partido” avançam num território que historicamente desembocou na insanidade da intolerância e eliminação de seres humanos sob o nazismo, o fascismo e similares. Uma proposta que é absurda e letal pelo que manifesta e pelo que esconde[1]. O que os projetos que circulam no Congresso Nacional, em Câmaras Estaduais Municipais, em alguns casos como Alagoas já aprovados, cuja matriz é a “Escola Sem Partido” liquidam a função docente no que é mais profundo – além do ato de ensinar, a tarefa de educar. Na expressão de Paulo Freire, não por acaso execrado pelos autores e seguidores da “Escola Sem partido” – educar é ajudar aos jovens e aos adultos a “lerem o mundo”. Um dos argumentos basilares da “Escola Sem Partido” é a tese da “Liberdade de Ensinar”. O que se elimina e combate é justamente a liberdade de educar. O que era implícito desde a revolução burguesa, instruir sim, ainda que de forma diferenciada, mas educar não, agora é proclamado como programa de ação.
O que propugna a “Escola sem Partido” e a proposta que daí deriva constituem-se na esfinge que vai além do campo educacional. Uma esfinge para a sociedade brasileira decifrar e combater, antes que ela nos devore. Destaco aqui apenas alguns aspectos desta esfinge.
Ao por entre aspas a denominação de “Escola sem Partido” quer-se sublinhar que, ao contrário, trata-se da defesa, por seus arautos, da escola do partido absoluto e único: partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres, etc. Um partido, portanto que ameaça os fundamentos da liberdade e da democracia liberal, mesmo que nos seus marcos limitados e mais formais que reais. Um partido que dissemina o ódio, a intolerância e, no limite, conduz à eliminação do diferente.
Este é o lado mais voraz da esfinge. Vale aqui transcrever um breve trecho da crônica O alarme de Luiz Fernando Veríssimo escrito em 2014. Nela o autor alerta sobre os sinais que rondam sobre nossas cabeças como o monólito observado pelos astronautas no filme de Stanley Kubrick 2001: Uma Odisséia no Espaço. Veríssimo se pergunta:
Haveria um momento na vida das pessoas ou das sociedades em que funcionaria um alarme parecido com o que alertou o Universo para a chegada dos temíveis humanos, no filme. Pode-se especular sobre qual seria esse momento para um judeu na Alemanha, nas primeiras manifestações do nazismo, por exemplo. Seria a pregação racista do partido mesmo antes de assumir o poder? Seria o que já se sabia do pensamento de Hitler e outros teóricos do fascismo? Qual o exato instante em que este hipotético judeu se convenceu que era preciso fugir do holocausto que se aproximava?
Para muitos, o aviso nunca veio, ou veio tarde. Muitos não acreditaram que o nazismo chegaria ao poder e depois aos seus excessos. E pagaram por não reconhecer o momento. Demorou algum tempo para que o resto do mundo se desse conta do que estava acontecendo na Alemanha nazista. O fascismo foi visto como um bem-vindo antídoto para a ameaça comunista. Já havia perseguição a judeus e outras minorias no país e a companhia Ford continuava fazendo negócios com a Alemanha – e continuou a fazer negócios depois do começo da guerra. Henry Ford era um notório antissemita, mas os produtores de Hollywood que desencorajavam críticas ao regime de Hitler nos seus filmes para não perder o mercado alemão eram todos judeus. Nenhum reconheceu o momento. Na falta de um sentinela para nos alertar que os bárbaros estão tomando conta, resta confiar no nosso instinto[2].
Nada mais explícito para o aviso da “Escola Sem Partido” e da “Liberdade para Ensinar”. As esfinges mais vorazes são aquelas que nos chegam pela incapacidade de vermos os sinais, pois elas se escondem sob o manto ideológico de “liberdade”, da formação competente para a competitividade e sucesso na vida dos negócios. Manto martelado pelos poderosos meios de comunicação que fazem parte desta ideologia e passam a moer os cérebros de pais, crianças e jovens e de corporações políticas contra a escola pública e os docentes por não ensinarem o figurino que a “arte do bem ensinar” manda.
A única leitura do mundo, da compreensão da natureza das relações sociais que produzem a desigualdade, a miséria, os sem trabalho, os sem teto, os sem-terra, os sem direito à saúde e educação e das questões de gênero, sexo, etnia, cabe aos “especialistas” autorizados, mas não à professora e ao professor como educadores. Decreta-se a idiotização dos docentes e dos alunos, autômatos humanos a repetir conteúdos que o partido único, mas que se diz sem partido, autoriza a ensinar.
No chão da escola, a esfinge da “Escola sem Partido” e da “Liberdade para ensinar”, quebra o que define a relação pedagógica e educativa: uma relação de confiança, de solidariedade, de busca e de interpelação frente aos desafios de uma sociedade cuja promessa mais clara, para as novas gerações, é de” vida provisória e em suspenso”. Esta pedagogia de confiança e diálogo é substituída pelo estabelecimento de uma nova função para alunos, pais, mães: dedo-duro. Muito mais grave do que os vinte e um anos de ditadura civil-militar onde os dedo-duro eram profissionais.
Em 2000, dezesseis anos atrás, estive dando uma palestra na bucólica e pequena cidade de São Ludgero em Santa Catarina. Ano que comemorava os quinhentos anos de descobrimento do Brasil. Na parede estavam trabalhos de alunas e alunos da nona série e um destes trabalhos de uma menina estampavam a seguinte frase: Querem nos convencer que o Brasil foi descoberto em mil e quinhentos: que mentira, que vergonha! Certamente teve um professor ou professora de história que, por suas análises, lhes permitiu ver que este é o discurso dos descobridores que consideravam os povos primevos (denominados por eles de índios) não humanos e, portanto, embora aqui estivessem a milhões de anos, sua história não existia. Quantos pais e alunos seriam hoje incentivados a denunciar como aberração doutrinária desta professora ou professor que ideologizou esta pobre menina inocente a dizer tamanho absurdo! Qual seria a pena estipulada pela legislação da “Escola Sem Partido” já aprovada em Alagoas para esta professora ou professor? Perda do concurso? Um ou dois anos de reclusão? Haja cadeias, pois os docentes do Brasil, em suas organizações científicas, culturais, sindicais e por franjas de partidos políticos que atuam nos parlamentos proclamam: não somos idiotas, esta mordaça não vingará, mesmo que a insanidade ou os que não percebem o alarme da esfinge a constituam em lei.
Todavia, face à brutalidade desta esfinge que paira sobre nossa sociedade vale reiterar a sinalização dada por Luiz Fernando Veríssimo: Na falta de um sentinela para nos alertar que os bárbaros estão tomando conta, resta confiar no nosso instinto.
* GAUDÊNCIO FRIGOTTO é Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor titular (aposentado) na Universidade Federal Fluminense. Atualmente professor no Programa de Pós Graduação em políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[1]. Para análises que aprofundam o sentido manifesto e o que escondem os ideólogos da escola sem partido, liberdade de aprender etc. o leitor poderá consultar os textos do professor Dr. Fernando de Araújo Penna da Universidade Federal Fluminense em: site. anpuh.org
[2] . Ver: Luiz Fernando Veríssimo. O alarme, http://www.cultura.estadao.com.br, postado em 20 de fevereiro de 2014 e retirado da internet em 27 de junho de 2016.
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