sexta-feira, 24 de junho de 2016

Entrevista: Reginaldo Prandi estuda religiões afro-brasileiras


Pesquisador escreveu 'Mitologia dos Orixás', livro que reúne depoimentos de pais e mães de santo


Por Flavio Lobo
São Paulo



Uma história recheada de mistério estreou nesta terça-feira, 8 de janeiro, na Rede Globo. Em "O Canto da Sereia", Isis Valverde interpreta uma cantora de axé que alcança o sucesso de modo repentino, mas acaba assassinada em cima de um trio elétrico. A trama gira em torno da morte de Sereia e integra fortes elementos da cultura brasileira, como o Candomblé.

Para se aprofundar sobre as religiões afro-brasileiras, o Globo Universidade republica entrevista com Reginaldo Prandi, cedida originalmente em 2009, no qual o pesquisador fala sobre o livro "Mitologia dos Orixás" - a maior coletânea de mitos iorubás de que se tem notícia. A publicação reúne 301 histórias colhidas em entrevistas com dezenas de pais e mães de santo brasileiros. Nos relatos desse oráculo afro-brasileiro, as divindades encarnam eternamente, no tempo circular do universo mítico, as qualidades e papéis fundamentais que nós, seus filhos humanos, reproduzimos ao longo da vida.

A trajetória do sociólogo Reginaldo Prandi demonstra como várias dessas características e faculdades humanas, mesmo algumas vistas em geral como difíceis de conciliar, podem se combinar numa única biografia. Prandi iniciou sua carreira universitária como professor de Estatística e coordenou a criação do Instituto Datafolha, por meio do qual mudou os padrões de realização e divulgação de pesquisas eleitorais e de opinião no Brasil, inclusive divulgando, junto com os resultados, informações sobre metodologia e margens de erro. Referência na área mais exata, mais “dura” das Ciências Sociais, tornou-se também um grande especialista no estudo da religião. E, como no caso das pesquisas de opinião, fez com que o conhecimento gerado por seu trabalho transbordasse os limites acadêmicos: além de publicar "Mitologia dos Orixás", obra acessível a leitores não especializados, Prandi escolheu e recontou alguns dos mitos em livros infanto-juvenis. Professor titular da Universidade de São Paulo (USP), aposentou-se em 2006 e, atualmente, além das atividades de pesquisador, dedica-se a uma terceira vertente de sua produção intelectual, a literatura de ficção.

Globo Universidade – Apesar de aposentado, o senhor continua fazendo pesquisa na área de Sociologia da religião?
Reginaldo Prandi – Passei três anos estudando as diferentes visões e estratégias de conversão do catolicismo e das igrejas evangélicas. O catolicismo quer mudar a cultura e controlá-la nos seus aspectos mais gerais, enquanto as religiões que mais crescem atualmente estão preocupadas quase que exclusivamente com a conversão do indivíduo. Enquanto o catolicismo luta para mudar as mentalidades, para atrair e salvar as pessoas por meio de mudanças culturais abrangentes, os evangélicos atuam muito mais de pessoa para pessoa, sem se preocupar com a cultura em geral. Claro que, ao conseguir converter muita gente, as igrejas evangélicas acabam produzindo mudanças culturais, mas esse não é o foco do projeto evangélico. A concepção evangélica é muito mais coerente com o individualismo que hoje marca o estilo de vida e a visão de mundo das pessoas. Ao tentar converter a cultura, o catolicismo mantém uma concepção atrasada e tem perdido terreno para os evangélicos. Foi isso que estudei nos últimos três anos.

GU – Há um aumento de interesse pelas religiões afro-brasileiras na sociedade em geral e no meio acadêmico em particular?
RP – Esse aumento de interesse vem de décadas atrás, quando, no contexto cultural da chamada Nova Era, o mundo estava se voltando para o Himalaia, para os gurus, buscando absorver conhecimento da Índia e outras regiões do Oriente, e no Brasil houve um movimento na direção dos terreiros da Bahia, das mães de santo. Esse movimento se amplificou graças ao teatro, à música e ao cinema, por meio de artistas como Dias Gomes, Glauber Rocha, Vinicius de Moraes, Baden Powell, Caetano Veloso, Gilberto Gil... De repente, muita gente que antes não tinha contato com esse universo começou a jogar búzios, ir a terreiros, fazer seu ebó (despacho, oferenda), seu descarrego e, com isso, além de atrair novos fiéis e simpatizantes, essas religiões sofreram um processo de transbordamento para a cultura do consumo. Nas universidades o interesse também cresceu bastante. Hoje há muitas dissertações, teses, publicações e congressos sobre o assunto. Existem vários cursos de pós-graduação a respeito e, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), até um programa de pós-graduação voltado para o tema.

GU – Haveria hoje uma adesão maior da classe média às religiões afro-brasileiras e, devido ao crescimento das evangélicas, uma redução dos contingentes de fiéis mais pobres?
RP – A umbanda sempre teve maior adesão na classe média baixa. Já o candomblé mistura muito as camadas mais populares com camadas intelectuais, médias... O candomblé representa bastante bem a diversidade social brasileira. Mas a política de conversão de certas igrejas evangélicas é bem agressiva e tem conseguido ganhar muito terreno. Já quase não existem terreiros mais nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo. Os evangélicos têm uma grande estrutura, televisão, rádio, jornais, aparatos jurídicos...

GU – Essa falta de estrutura das afro-brasileiras decorre de características intrínsecas, fundamentais, dessas religiões?
RP – De certa forma, porque elas dificilmente geram excedentes que possam ser investidos na construção de estruturas maiores, apesar de serem custosas, de custarem caro para seus praticantes. Hoje para se iniciar no candomblé você tem de arcar com uma conta pesada. Nos terreiros paulistanos, não sai por menos de uns R$ 20 mil. Você precisa bancar todos os trajes e objetos rituais que chegam a mais de cem itens, tem que pagar o trabalho do pai de santo que vai cuidar de você enquanto você estiver recolhido no terreiro. Por um período de pelo menos 15 dias todo o terreiro se mobiliza para atender as suas necessidades religiosas e você tem que bancar vários custos para permitir que todas aquelas pessoas possam se dedicar àquilo: comida, contas de luz, água... O terreiro canaliza muito recursos, mas são todos consumidos no próprio trabalho religioso, não sobra dinheiro para investir.

GU – Você poderia citar diferenças entre a umbanda e o candomblé?
RP – A umbanda lida muito com exus e pombas-giras, ligados a entidades demoníacas no imaginário popular, então ela é alvo mais direto do ataque pentecostal. Além disso, o candomblé ainda está em expansão no País e, desde os anos 1970, a umbanda vem encolhendo, inclusive pela própria competição do candomblé emergente em regiões como Rio e São Paulo. Muitas vezes as pessoas deixam a umbanda para se converter ao candomblé, porque acham que ele é mais autêntico, mais africano e, portanto, tem mais força, uma magia mais poderosa. Há uma trajetória padrão nos novos territórios das religiões afro-brasileiras, como Rio e São Paulo. A pessoa é de origem católica, tem uma experiência no espiritismo kardecista, passa pela umbanda, depois chega ao candomblé. E o candomblé é uma religião estritamente ritual, não é uma religião da palavra. Nele você não discute, não argumenta, nem sequer reza. Tudo depende de um ritual e esse ritual sempre tem uma base material nos objetos, comidas, animais, sacrifícios, roupas, folhas, plantas, cores. Essa materialidade então passa a ser reconstituída a partir da expansão de um negócio, empreendimentos comerciais, lojas especializadas que às vezes chegam a importar objetos rituais africanos para satisfazer essa busca pelo que é visto como mais autêntico.

GU – Mas por mais que haja essa busca pelo mais “genuíno”, há na verdade uma grande mistura, não?
RP – Sim, e a maioria das pessoas que se aproximam das religiões afro-brasileiras em seus “novos territórios”, que em geral são mais consumidores do que propriamente fiéis, e não têm ideia da diferença entre umbanda e candomblé. O candomblé originalmente é a religião dos orixás, nada mais que orixás. Já na umbanda os orixás são uma espécie de cabeça de falange, são grandes referências, mas não participam do dia a dia do ritual, que se baseia no culto de uma série de entidades, sobretudo caboclos e pretos-velhos. Na Bahia os terreiros de candomblé mais antigos só cultuam os orixás e os antepassados da casa. Mas quando o candomblé começou a se espalhar pelo Sudeste, foi incorporando elementos da umbanda: caboclos, pretos-velhos e até o culto das chamadas “entidades de esquerda”. O panteão de esquerda é composto por exus e pombas-giras, espíritos de pessoas que durante a sua vida terrena foram marginais – malandros, prostitutas, jogadores, bandidos. São vistos como entidades do bem, mas que sabem manipular esse lado difícil e subterrâneo da vida social. No início, mesmo quando absorvia os caboclos, o candomblé deixava de fora as entidades de esquerda, mas muitas pessoas que foram da umbanda continuaram incorporando e cultuando exus e pombas-giras quando se converteram para o candomblé, dando origem ao chamado “umbandomblé”.

UG – Mas exu não é também uma entidade tradicional do candomblé?
RP – Sim, mas aí se trata de uma entidade bem diferente. No candomblé, Exu é o orixá mensageiro. Sem a intervenção dele, nada acontece, já que a comunicação das pessoas com os outros orixás precisa passar por ele. Como orixá, Exu é o princípio da transformação, da dinâmica. Ele também está muito relacionado a um aspecto difícil, complicado, ligado à sexualidade, às funções sexuais e à reprodução. Mas é, sobretudo, um mensageiro, um “carteiro” que leva “cartas”, os pedidos das pessoas, sem ler seu conteúdo, por isso pode trabalhar tanto para o bem quanto para o mal. É uma entidade amoral, que cobra para fazer o serviço dele, sem qualquer julgamento ou interferência moral.

Siga @tvguniversidade

Nenhum comentário:

Postar um comentário