O proibidão está aí. Machista, homofóbico, promovendo bailes onde traficantes aparecem armados
O recente estupro coletivo que abalou o país trouxe de volta a discussão sobre as letras do funk carioca, mais especificamente do subgênero que ficou conhecido como proibidão. No vídeo postado na internet que acabou denunciando o crime cometido numa comunidade da Zona Oeste carioca, um dos acusados de estupro refere-se a um desses hits de bailes funk dizendo “essa aqui mais de 30 engravidou”.
É difícil falar mal do funk hoje. Qualquer argumento contrário às suas letras é rebatido com acusações de racismo, preconceito, reacionarismo. E imediatamente vem à tona a comparação com o samba do começo do século passado. Assim como o funk, o samba, injustamente, foi considerado caso de polícia.
Não foi bem assim. Para falar a verdade, no começo da primeira metade do século passado, toda a música popular era discriminada. Não foi por acaso que, no fim do governo Hermes da Fonseca, a primeira-dama, Nair de Tefé, provocou confusão ao interpretar, ao violão, o “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga, numa recepção no Palácio do Catete. Rendeu até pronunciamento de Rui Barbosa no Congresso. Se o samba, especificamente, sofreu algum preconceito, certamente foi o preconceito religioso. Como todo mundo sabe, nos seus primeiros anos de vida, o samba era tocado em ritos do candomblé. O ritmo foi tão perseguido quanto a religião. Ou, como se dizia na época, macumba e samba, é tudo a mesma coisa. Hoje, em relação ao funk, não há nada parecido com esse preconceito. Por sinal, se há algum estilo musical que sofre discriminação atualmente, este é a música evangélica.
Os defensores do funk gostam também de dizer que os MCs que o praticam são como os sambistas de antigamente. Uns e outros são vistos como malandros, arruaceiros, bandidos. Talvez tenham razão. Mas é bom lembrar que os sambistas não eram tão injustiçados assim. Não foi à toa que o primeiro samba de Cartola chamava-se “Chega de demanda”. A demanda, no caso, pouco tem a ver com o significado das aulas de Economia. A demanda de Cartola caiu em desuso, mas ainda pode ser encontrada nos dicionários. Significa “luta, ação de combater ou confrontar de maneira violenta”. Era assim que agiam, por exemplo, os blocos de carnaval. Eles desciam o morro e iam até a Praça Onze partindo para a briga com qualquer outro bloco que encontrassem. A proposta de Cartola era juntar todos os blocos do morro da Mangueira para simplesmente cantar e dançar o samba. Nada de brigas. Chega de demanda. Olhando para alguns bailes funk de hoje, o comportamento dos integrantes dos blocos de Cartola — ele mesmo participava dos briguentos Arengueiros — é angelical.
Mas o funk, o proibidão, está aí. Machista, homofóbico, promovendo bailes onde traficantes aparecem armados, incitando a violência, o estupro e a pedofilia. Tudo bem, é cultural, como fez questão de registrar em lei o deputado Marcelo Freixo. Está lá, no artigo 1º da lei que ele criou há sete anos: “Fica definido que o funk é um movimento cultural e musical de caráter popular”. Mais que isso, a lei de Freixo estabelece que “compete ao poder público assegurar a esse movimento a realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes, reuniões sem quaisquer regras discriminatórias e nem diferenças das que regem outras manifestações dessa natureza.” Em outras palavras, o funk pode discriminar, o Estado, não.
MC Smith, o autor do funk que ajudou a celebrar o estupro no vídeo macabro, se explicou para o G1: “Eu falo o que acontece na comunidade.” MC Leonardo, líder da Apafunk (Associação dos Amigos e Profissionais do Funk) foi mais longe em entrevista ao UOL: “O funk é machista? É. O funk é homofóbico? É. O funk é sensual e erótico? É. O funk não vem de Marte. O funk nasce dentro dessa sociedade, que é machista, patriarcal, erótica, enfim. O funk não é um espelho da sociedade, e sim o reflexo da sociedade.” Faço o maior esforço para entender o raciocínio dos amantes do funk, mas... o espelho não reflete?
Nesses tempos do politicamente correto, em que o movimento organizado de feministas vai para a rua a qualquer sinal de ameaça a seu protagonismo, é estranho que elas não tenham comprado ainda a briga contra o funk. Ou contra o proibidão. As letras do gênero continuam reduzindo a mulher à condição de objeto, mas elas preferem ser coniventes a mexer num assunto polêmico que supostamente contradiz o comportamento progressista sobre o qual elas consideram ter direitos exclusivos. Ou se é progressista ou se combate o funk.
A lei de Freixo foi criada por reivindicação da Apafunk. Na época, o deputado propôs um acordo: “Eu defendo a causa de vocês e vocês usam o funk para debater a favela e seu papel na cidade.” Sete anos depois, já dá para dizer que o acordo não foi cumprido por uma das partes. Talvez o funk não queira discutir o papel das favelas na cidade porque ele não é espelho. É reflexo.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-funk-espelho-o-reflexo-19444390#ixzz4Azc24jVO
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