"Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões." É o início da linguístico-antropológica "Língua", memorável canção de Caetano Veloso, escrita em 1984. Certamente já citei essa obra neste espaço, mas as circunstâncias exigem que o faça novamente.
Quando diz "a minha língua", Caetano se refere ao português do Brasil, que se fez basicamente do e no português de Portugal, de que Camões é divisor de águas.
A língua do Brasil roça (com todos os seus sentidos) a língua de Camões. É e não é essa língua. Abre nela seus caminhos como quem, munido de foice, enxada e facão, roça o campo para a futura plantação. Ao pé da letra, "roçar", que vem do latim, significa "arrancar", "dilacerar".
Nossa língua (e aqui peço licença a Caetano -que certamente ma dará- para participar da "posse" dessa língua) roça a língua de Camões como pernas de amantes que se roçam e chegam a formar um único corpo, e depois se separam, e se juntam, e se fundem, e se separam...
Pois bem. No último domingo, Gustavo Kuerten, o nosso Guga, ganhou um torneio em Lisboa. No tradicional discurso que o vencedor faz nessas ocasiões, Guga não hesitou. Disse que pela primeira vez na carreira poderia falar em português fora do Brasil e ser compreendido por todos. E meu coração lusoparlante se emocionou. A Agassi nada restou que ouvir, sem compreender.
Por um momento, um teuto-brasileiro barriga-verde, "manezinho" (denominação inicialmente preconceituosa dos imigrantes portugueses -mormente açorianos e pescadores- da parte insular de Florianópolis; hoje, ao que parece, o termo é de uso genérico), pôs em prática o que Caetano prega em "Língua": "A língua é minha pátria, e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria". O termo "frátria", criado por Caetano, baseia-se na raiz latina de "fraternidade", "fraternal" ("fratre", que significa "irmão"), que, por sinal, é a mesma de "frade".
O mote da frase de Caetano vem de Fernando Pessoa ("Minha pátria é a língua portuguesa"). O poeta português afirmava que Portugal poderia sumir, desintegrar-se, desde que a língua portuguesa sobrevivesse.
Caetano inverte a ordem e termina querendo que a língua não seja nem "pátria" (que vem de "pater", "patris" -"pai"), nem "mátria" (termo criado por ele e que vem da raiz de "mãe"), mas "frátria", ou seja, elemento que una fraternalmente.
Por um momento, Guga me fez viajar no doce sonho da lusofonia. Por um momento, esqueci o que me relatou um comandante de empresa aérea brasileira que opera na linha Brasil-Portugal. Sempre que trabalha na rota, nosso compatriota tenta contato com a torre do aeroporto de Lisboa em português. "O senhor não é português. Só falamos em português com portugueses." Renitente, nosso Vasco da Gama dos ares não se dobra. Na viagem seguinte, insiste. A resposta não muda.
Valeu, Guga. Pela memorável vitória, por pôr em prática o desejo (e o sonho) de Caetano e de muitos lusoparlantes e por responder à pergunta que Caetano faz em "Língua" e que está no título deste texto. É isso.
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