RIO — Ataulfo Alves e Wilson Baptista soltam, em 1941, na voz de Ciro Monteiro: “Quem trabalha é que tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar”. Martinho rebate com malemolência, com versos de Darcy da Mangueira escritos em 1974: “Na segunda-feira eu não vou trabalhar/ Na terça não vou pra poder descansar/ Na quarta preciso me recuperar/ Na quinta eu acordo meio-dia, não dá/ Na sexta viajo pra veranear/ No sábado vou pra Mangueira sambar/ Domingo é descanso e eu não vou mesmo lá”. Com tintas cruas e contundentes, o rapper Projota descreve a dureza de um “bonde São Januário” contemporâneo, dos anos 2010: “Sardinhas enlatadas são jogadas ao relento/ (...) Porque dá mais trabalho chegar no trabalho do que trabalhar”.
O tema do trabalho atravessa as fases da canção brasileira desde seu início — com a fundação do malandro mítico — até os dias de hoje, com o impacto da tecnologia e das crises econômicas. Neste 1º de Maio — data criada em memória dos operários de Chicago mortos em 1886 por reivindicarem melhores condições —, O GLOBO visita o tratamento dado ao tema na música brasileira, ao longo de sua história.
Os operários do samba, desde o início, cimentaram um olhar pouco lisonjeiro sobre o trabalho, como lembra o jornalista Tárik de Souza:
— O orgulhoso diploma de malandro dos primeiros sambistas já prenunciava que o trabalho seria mal tratado por um bom tempo na música popular do país. Da turma do Estácio, de Ismael Silva e Nilton Bastos, com “O que será de mim” (“Se eu precisar algum dia/ De ir pro batente/ Não sei o que será/ Pois vivo na malandragem/ E vida melhor não há”), a Noel Rosa e sua “Filosofia”, com André Filho (“Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo”), sem falar de seu pseudo desafeto Wilson Baptista e sua “Inimigo do batente” (“Se lhe arranjo um trabalho/ Ele vai de manhã, de tarde pede as contas”). Cyro de Souza e Babaú, em 1937 desdenhavam do ofício em “Tenha pena de mim” (“Trabalho, não tenho nada/ Não saio do miserê”).
OLHAR POSITIVO NA ERA VARGAS
Autor do estudo “O trabalho na música popular brasileira”, o jornalista Fabio Gomes lembra alguns poucos exemplos que destoam dessa ideia, como “Vadiagem”, de Francisco Alves, lançado em 1929. Seus versos condenam o modo de vida malandro, mas não pela convicção de sua nobreza, mas por uma mulher. Os sambas a favor do trabalho surgiriam apenas a partir da atuação do Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas.
— Com o Estado Novo, Getúlio, fundador do Partido Trabalhista Brasileiro, tentou melhorar a imagem do trabalho e provocou até a súbita “regeneração” de Wilson com o parceiro Ataulfo em “O bonde São Januário” — lembra Tárik, puxando para a discussão as escolas de samba. — A transformação dos sambas enredo na temática patriótica também fez brotarem exaltações ao trabalho.
Num caminho paralelo, longe da ideia da selvageria urbano-industrial, Dorival Caymmi cantava o trabalho da perspectiva de sua Bahia idílica. Há em sua obra diversos ofícios retratados, como o pescador e a vendedora de acarajé, quase sempre poeticamente conectados com a natureza ou com a arquitetura de ladeiras e sobrados de Salvador. “O vento” é um exemplo emblemático, com a síntese concreta caymmica: “Vento que dá na vela/ Vela que leva o barco/ Barco que leva a gente/ Gente que leva o peixe/ Peixe que dá dinheiro, Curimã”.
— Não existem fases estanques no tratamento dado ao trabalho, já que Milton Nascimento estreou com uma afirmativa “Canção do sal”, e também rasgou o verbo em “Escravos de Jó”, com Fernando Brant — aponta Tárik.
Com o contexto internacional da Guerra Fria, começam a surgir nas canções, para além do ponto de vista malandro, questionamentos às condições dos trabalhadores, como “Zé Marmita”, de Luis Antonio. A visão do capitalismo como opressor sustentou a denúncia angustiada de Chico Buarque em canções como “Cotidiano”, “Construção” e “Pedro pedreiro”. Fabio Gomes traz o Roberto Carlos romântico dos anos 1970 para o debate, num interessante paralelo com Chico:
— Sobre o tema do operário que acorda, deixa a mulher em casa e vai trabalhar, é simbólico que Chico faça “Cotidiano” enquanto Roberto e Erasmo fazem “Rotina”. A da dupla é uma visão romântica, na qual o grande problema do trabalho é afastar o sujeito da mulher amada, porque fora isso está tudo bem.
Há canções que se inscrevem num lugar que é diferente tanto do malandro (que dribla a lógica do trabalho) como da denúncia, do protesto. O citado “Samba do trabalhador” transita entre os dois lados, ao cruzar a malandragem de quem não vai trabalhar a semana inteira com a conclusão consciente “Eu não vou trabalhar/ Eu só vou, eu só vou/ Se o salário aumentar”. Ou “Inventor do trabalho”, de Batatinha, na qual o baiano condena o personagem-título (“O tal que inventou o trabalho/ Só pode ter uma cabeça oca/ Pra conceber tal ideia/ Que coisa louca/ O trabalho dá trabalho demais”) mas no fim o isenta e reflete, melancolicamente, que a culpa é da “Dona Necessidade”.
O MALANDRO E O DERROTADO
Há ainda os trabalhadores do povo orgulhosos de sua condição, como o “Vendedor de caranguejo”, de Gordurinha. Autor do ensaio “Ao redor de Paulinho da Viola”, no qual apresenta uma análise da relação entre samba e trabalho, Nuno Ramos acredita que a canção de Gordurinha, sob um olhar mais profundo, espelha uma realidade trágica que ele vê em Adoniran Barbosa:
— Tem aquele verso em “Saudosa maloca” no qual, assistindo à casa em que morava com os amigos ser derrubada, o personagem contém a reação de um deles e dá razão ao patrão (“Mato Grosso quis gritá/ Mas em cima eu falei/ Os home tá com a razão/ Nós arranja outro lugar”). Isso é trágico. É de uma humildade chocante — avalia Ramos, que não vê o malandro como uma representação única no samba. — Tem o samba de quem perdeu, de quem não se deu bem. Isso está em Nelson Cavaquinho, Cartola, Zé Ketti, Batatinha... É a voz do que restou da escravidão, de alguém que perdeu a origem, como canta Batatinha: “Ninguém sabe quem sou eu”. Não é a voz de quem se virou, o malandro. É de quem se fodeu.
Os anos 1980 veem a gravação histórica de cantos de escravos por Clementina de Jesus, Doca e Geraldo Filme. Mas também assistem à chegada do olhar punk sobre o trabalho e o humor de um “Eu sou boy”, do Magazine. O Mundo Livre S/A, em sua “Livre iniciativa”, nos anos 1990, já incorpora o “antineoliberalismo” e ironiza a ideia capitalista da livre iniciativa com versos como “Uma arma fumegante na mão”, levando o conceito para a criminalidade. Na mesma década, Marcelo Yuka afirma um ato de liberdade que parte da decisão de faltar ao trabalho (“Invente uma doença que me deixe em casa pra sonhar”).
Criador do Samba do Trabalhador, no Renascença, Moacyr Luz acredita que o tema segue pertinente:
— O que muda é o macacão, é a marmita... Mas a questão é muito atual, reflete nos camelôs, no preconceito racial.
O rap (ecoando os cantos de escravos) dá razão a Moacyr, como nota Tárik, citando “o exemplo bem recente do paulistano Rashid”, em “Como estamos”: “As portas de emprego tudo fechada/ e as da cadeia tudo aberta”.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/musica/neste-1-de-maio-ouca-10-musicas-brasileiras-que-cantam-trabalho-19204990#ixzz48N5WC8sk
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