segunda-feira, 2 de maio de 2016

Editorial da Revista Brasileiros - Menos burrice



A intolerância patológica permeia o cenário político atual e é este debate que está no cerne desta edição da Brasileiros

Hélio Campos Mello, diretor de redação


Mais do que impeachment, o que o Brasil precisa mesmo é de um divã.  Convivemos hoje com xingamentos e agressões contra quem pensa de maneira diferente, se veste com cores identificadas com essa ou com aquela agremiação política ou defenda pontos de vista diferentes.

Exemplos disso não param de crescer. Como o casal que foi agredido na avenida Paulista porque estava com uma bicicleta vermelha. A seguir parte do relato de Isadora Shutte, a moça agredida:

“ …eu saí do meu trabalho próximo à rua da Consolação como todos os dias. E o Lucas, meu companheiro, foi me buscar de surpresa. Eu estava de bike e ele estava de skate. Quando nos aproximamos do Masp, vimos a via da ciclo-faixa congestionada de pessoas carregando bandeiras do Brasil, e com cartazes contra a posse do Lula no Ministério da Casa Civil etc. Eu sou contra essas manifestações, acho realmente uma palhaçada, mas respeito o direito de opinião política de qualquer pessoa, esquerda, direita, ou o que seja… Um homem muito mal educado veio com um alto-falante e gritou no meu ouvido ‘Lula ladrão’, enquanto eu insisti em pedir para descongestionar a via… antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, expressar qualquer opinião política ou simplesmente dar um jeito de passar por ali para voltar pra minha casa, já ouvíamos coisas do tipo ‘eles têm cara de comunista ladrão’, ‘a bicicleta é vermelha, vai pra Cuba’… um bando de gente ignorante, sem educação, sem noção de civilidade soltando merda pela boca. Afinal, eu não comprei uma bicicleta vermelha pra homenagear o PT… De repente vi o Lucas olhando no olho de um idiota que agredia a gente com tapas na cabeça e falando ‘meu, para com isso, você tá batendo em uma mina, a gente só tá tentando voltar pra casa’. E segundos depois o imbecil olhando no fundo dos olhos dele deu uma cabeçada nele…Foi assustador, um homem cuspiu no meu rosto, ouvíamos muitos xingamentos e eu não queria fugir dali e deixar esse bando de retardados impunes …gostaria de dizer que eu não sou petista, e que eu jamais agrediria uma pessoa só por ter opinião política diferente da minha. Ainda que eu sinta vontade, eu nunca faria isso. Eu fico triste pela situação que temos hoje no Brasil em que eu não sei quem é mais doente, o governo, a oposição, ou a população…”

Esta intolerância patológica permeia o cenário político atual e é este debate que está no cerne desta edição da Brasileiros. Muito além das paixões, pensadores de primeira linha analisam a crise desencadeada pela gana dos opositores para derrubar a presidenta eleita, aliada à inépcia do próprio governo  (a propósito, o substantivo presidente aqui é usado no feminino porque assim indica o Dicionário Houaiss, edição 2009, em sua página 1.546).

Impeachment é um instrumento previsto na Constituição. Não depende da direção dos ventos. Para que um processo de impeachment culmine no afastamento de um presidente da República, é preciso que exista um crime de responsabilidade comprovado. De outra forma, é golpe. Desde a proclamação do resultado das eleições de 2014, seguida por um pedido de recontagem de votos pelo PSDB, Dilma Rousseff não teve nem um minuto de sossego. A pressão dos adversários, associada aos desacertos na gestão e na economia, provocou uma paralisia na máquina do governo. Como se não bastasse, a Operação Lava Jato não deixou pedra sobre pedra no campo do PT. Paralisadas pela perplexidade, as forças progressistas se recolheram até que a estratégia de “vazamentos seletivos” e as condutas questionáveis da chamada República de Curitiba ficassem evidentes.

A esquerda só começou a sair das cordas em meados de dezembro de 2015, depois que professores universitários lançaram o documento Impeachment, Legalidade e Democracia, na tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Entre os signatários estava o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, que em artigo nesta edição defende a não existência de argumentos jurídicos para o impeachment: “Eles não existem a não ser em pessoas que tenham sido tomadas por emoções como a justa indignação e o apaixonado ódio, ou então nos oportunistas que querem governar sem terem vencido nas urnas, ou então para quem o impeachment é a melhor forma de terminar a crise política e a crise econômica”.

A partir do ato no Largo São Francisco, as ruas passaram a ser ocupadas e uma divisão se estabeleceu. No dia 13 de março, um dos grupos promoveu uma megamanifestação na avenida Paulista, com semelhanças com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, arquitetada 52 anos antes, para derrubar o governo João Goulart.

O herói da manifestação dos defensores do impeachment foi o juiz Sergio Moro, da Lava Jato. Para cada cartaz de “Fora Dilma”, “Fora PT”, havia pelo menos uma louvação ao juiz, que no começo do mês havia promovido uma condução coercitiva irregular do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um dos cartazes recorria de forma direta ao espírito de 1964: “Moro, livrai-nos do mal. Amém”. Três dias depois, o juiz colocou mais lenha na fogueira ao divulgar grampos de conversas telefônicas de Lula, inclusive com a presidenta. Com o País perplexo e a notícia do grampo correndo mundo afora, o grupo pró-impeachment decidiu acampar na Paulista, em frente à Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Apoiadora do golpe de 1964, assim como a mídia de antes e de hoje, a Fiesp, uma das principais articuladoras do movimento para a deposição de Dilma Rousseff, alimentou os acampados.

O acampamento durou 36 horas, marcadas por intolerância e ódio. Um adolescente que passou pelo grupo foi perseguido e agredido com tapas, chutes e socos na cabeça. A calçada só foi liberada depois de intervenção da Polícia Militar, pouco antes do ato contra o impeachment. De lá para cá, o equilíbrio de forças entre os dois campos ideológicos parece aumentar,  mas também aumentam os atritos entre desconhecidos, colegas, amigos e familiares por causa da política. Em Porto Alegre, uma médica pediatra interrompeu o atendimento de um bebê de um ano, que acompanhava desde o primeiro mês de vida, porque os pais são de esquerda. A médica chegou inclusive a avisar que está “declinando, em caráter irrevogável, da condição de pediatra” da criança, em mensagem enviada por WhatsApp à mãe do bebê, Ariane Leitão, que foi secretária de Políticas Públicas para Mulheres na gestão de Tarso Genro (2011-2014). Caiu por terra a ideia do “homem cordial”, central no livro Raízes do Brasil, do historiador Sergio Buarque de Holanda (1902-1980), como disse à repórter Vivian Mocellin a filósofa Marcia Tiburi. Também disse a autora de Como Conversar com um Fascista que o desrespeito à alteridade – ao que pensa o outro – é sinônimo de burrice.

E é por tudo isso que não por acaso o pacote de ecumênicas opiniões preparado pela Brasileiros para debater o Brasil tem Tales Ab’Sáber, um psicanalista, em sua abertura.

Link curto: http://brasileiros.com.br/XXOKJ

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