Prestes a votar a emenda que reduz para 16 anos a maioridade penal, a Câmara dos Deputados está no centro de uma importante discussão sobre o futuro de milhares de jovens infratores. Queremos que eles sejam jogados no falido sistema penitenciário, ou que tenham uma chance de recuperação com a ajuda de medidas socioeducativas?
Jaqueline* se envolveu com drogas aos 12 anos. Moradora de Gama, uma cidade-satélite de Brasília, estudava numa escola superlotada, onde foi influenciada a fumar maconha pelos próprios colegas. Da maconha passou para lança-perfume, cocaína e crack. Viciada, começou a roubar e a vender drogas para manter o vício. Foi presa cinco anos depois em um assalto e foi parar em um Centro de Atendimento Socioeducativo, onde permaneceu por 45 dias. Voltou para a rua e para as drogas, sem se importar com a liberdade assistida.
“Não pensava no meu futuro, só em me drogar, achava que nem chegaria aos 18 anos”, disse Jaqueline a GALILEU. Um mês após completar a maioridade, foi presa de novo — e desta vez enviada a um presídio comum, que faz as instalações da série do Netflix Orange Is the New Black parecerem um hotel cinco estrelas.
Na cela, convivia com outras 45 mulheres, sem colchão, e sua comida quase sempre era servida com cabelos e pequenos insetos. Cinco meses depois foi libertada, mas obrigada a cumprir medida socioeducativa, quando recebeu tratamento para o vício, fez cursos, foi ao dentista pela primeira vez e arranjou um emprego. “Saí da cadeia pior do que entrei, o que me ajudou mesmo foi a medida socioeducativa”, diz ela.
A história de Jaqueline é a mesma de milhares de jovens brasileiros — sem base familiar ou escolaridade e fisgados pela droga logo cedo — internados em estabelecimentos para menores infratores Brasil afora. São exatamente 111 mil jovens detidos por algum crime, e eles representam 0,5% da população de 21 milhões de adolescentes brasileiros. Agora, uma comissão especial da Câmara dos Deputados está avaliando a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Se aprovada, esses jovens deixariam de receber punições socioeducativas para cair no sistema prisional brasileiro, que é conhecido pelos sérios problemas de superlotação, insalubridade e negação de direitos básicos, como educação.
No século 14, Dante Alighieri, o primeiro poeta de língua italiana, escreveu A divina comédia, considerada uma das melhores obras literárias do Ocidente. A primeira parte do poema chama-se “Inferno”, uma alegoria sobre o conceito medieval de trevas, formado por nove círculos, três vales, dez fossos e quatro esferas. A cada círculo, o inferno se torna mais profundo. Para os julgados pela justiça brasileira, o sistema penitenciário — e a referência religiosa à penitência aqui não é por acaso — seria o último inferno.
Nas prisões comuns há um déficit de 200 mil vagas, e 40% dos presos ainda aguardam julgamento. Desses, apenas 40% serão condenados. “A situação carcerária brasileira é calamitosa, as unidades são superlotadas, as violências física, sexual e psicológica são enormes, falta acesso a saúde, educação e trabalho”, diz Raquel da Cruz Lima, coordenadora de pesquisa do Programa Justiça sem Muros. Seria esse o lugar ideal para enviar jovens de 16 e 17 anos? “Mesmo o sistema mais precário de medidas socioeducativas é melhor que o sistema prisional. Se o jovem tem alguma chance de se recuperar, é lá, porque passa mais pela educação do que pela punição”, explica a presidente da Fundação Casa, Berenice Giannella. De fato, o índice de reincidência dos infratores da Casa, de 15%, é menor que o das penitenciárias, com 70% — ainda que o primeiro não leve em consideração os jovens que voltam a ser pegos pela polícia, mas vão parar na cadeia.
Por fora, com arame farpado, guardas e grades por todos os lados, o Centro de Atendimento Socioeducativo a Adolescentes (Casa) Jardim São Luiz I, inaugurado em 2011 na zona sul de São Paulo, parece uma prisão como outra qualquer. Por dentro, suas acomodações nem de longe lembram o Complexo de Pedrinhas, no Maranhão, onde três detentos foram decapitados em 2014. Ao entrar na unidade, as grades são coloridas de um amarelo vivo, há pinturas na parede e até um mural com poemas de Dia das Mães.
A impressão é a de que estamos numa escola com grades. Tanto que Jefferson*, 18 anos, está agitado na cadeira à espera da liberdade, que lhe será concedida após a entrevista a GALILEU. Para ele, a maior vantagem de ter sido internado na Fundação Casa foi reencontrar a mãe. Logo depois que nasceu, na região do Grajaú, em São Paulo, seus pais se separaram e cada um ficou com um filho. Ele foi morar com a avó e o pai, que cuidou dele até os 11 anos, quando foi detido por homicídio. A avó faleceu, e ele então foi morar com uma tia que entrara em depressão depois de perder o filho numa troca de tiros com a polícia durante um assalto. A relação era difícil, e Jefferson saiu da casa da tia, deixou a escola para lá, alugou uma casa para si e começou a vender maconha. Foi preso duas vezes e liberado, até que na terceira foi parar na Fundação Casa, aos 16 anos. O único parente responsável foi acionado, e assim ele ouviu pela primeira vez a voz da mãe. Ela ligou da Paraíba, onde mora hoje com o namorado, e prometeu vir a São Paulo para vê-lo quando ele estivesse em liberdade. “Eu achava que não tinha ninguém. Agora tenho uma família me esperando”, diz.
“As pessoas acham que cumprir medida socioeducativa é um passeio na Disney, mas não é”, disse a GALILEU o defensor público Marcelo Carneiro Novaes. Apesar da evolução da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), conhecida pelas rebeliões e tumultos, para a Fundação Casa, ainda há problemas a serem resolvidos. “Não é um sistema que busca introjetar valores, é um processo para o acondicionamento, a obediência às regras. Por isso as constantes denúncias de maus-tratos e violações. E fora de São Paulo a coisa é bem pior”, diz Novaes.
A história de Pedro*, 20 anos, ilustra bem a situação desses centros sem infraestrutura adequada. Cansado de sofrer violência doméstica vinda dos tios e primos, ele fugiu de casa e encontrou seu sustento nas drogas. Aos 15 anos, envolveu-se com tráfico de cocaína e foi preso depois de dois sequestros que terminaram em homicídio. Pego pela polícia, foi enviado ao Case, ou Centro de Atendimento Socioeducativo, de Palmas, no Tocantins (cada estado dá um nome diferente para sua instituição responsável por menores infratores, por isso a diferença de nomenclatura).
“Todos os direitos básicos que eu tinha foram violados: o direito a visita familiar, a educação de qualidade, a um ambiente digno e salubre. Também vi muita coisa, adolescente sendo espancado, forçado a dizer coisas que não aconteceram para não sofrer represálias”, disse Pedro a GALILEU. Mesmo assim, foi o Case que o colocou em contato com seu pai, que morava em outra cidade e o deixou com a avó quando ele era pequeno. De volta a Goiânia, sua cidade natal, teve de cumprir medidas socioeducativas — que variam de trabalhos voluntários até a internação em centros de atendimento, sempre com um caráter mais educativo do que punitivo. “O que me fez mudar foi entender que tudo tem conserto”, afirma.
A PEC 171 causa polêmica principalmente por propor a alteração de uma cláusula pétrea (trecho que não pode ser mudado) da Constituição, segundo a opinião de alguns juristas, e por se basear em passagens bíblicas, e não em estudos científicos. Ainda assim, é popular dentro e fora do Congresso: 77% dos deputados federais são favoráveis à redução da maioridade penal. Não por acaso, a Câmara acabou de aprovar espaços exclusivos para menores de 21 anos em presídios, o que prepararia o terreno para a medida. E a população é ainda mais radical: 87% são favoráveis, segundo o Datafolha.
O Uruguai viveu uma situação parecida recentemente. Em 2011, um deputado sugeriu a redução da maioridade penal, e, durante três anos, diversos segmentos da sociedade se uniram na campanha “No a la baja” (“não à redução”, em espanhol) para informar que apenas 6% dos adolescentes cometiam delitos e que a proposta não faria bem ao país. Em 2014, 53% da população disse não à medida em um plebiscito. Nos Estados Unidos, a campanha “Raise the age” (“aumente a idade”, em inglês) também tem influenciado restrições à punição rigorosa de menores em vários estados. De 2005 para cá, 29 estados norte-americanos e a capital aprovaram leis que dificultam punir adolescentes como se fossem adultos. É uma grande mudança em relação aos anos 1990, quando o aumento no índice de crimes cometidos por menores levou a maioria dos estados a ampliar as penas para esses atos.
Há um motivo científico para isso. Certa vez, o psicólogo norte-americano Walter Mischel decidiu testar o autocontrole das crianças: é o teste do marshmallow. Elas eram colocadas numa sala sentadas diante do doce com a condição de que, se não o comessem até o pesquisador voltar, ganhariam outro marshmallow. Durante esse tempo, elas faziam as mais variadas expressões de dor, cheiravam o doce e batiam a cabeça na mesa. Resultado: apenas um terço das crianças conseguiu esperar, basicamente porque o autocontrole é uma das últimas capacidades a serem desenvolvidas no cérebro. E isso também pesa contra os adolescentes infratores.
A última etapa de formação do sistema nervoso é o revestimento dos neurônios com mielina. E, no cérebro, a última região que vai completar essa etapa é a dos lóbulos frontais e pré-frontais, responsáveis pelo controle dos impulsos, capacidade de antever o futuro, adiar gratificações e ajustar consequências. O que só vai acontecer na idade adulta, entre os 18 e os 20 anos. “Enquanto essa maturidade não é alcançada, não temos o controle mais sofisticado de nossos impulsos. É por isso que crianças e adolescentes são imediatistas”, disse a GALILEU o psiquiatra Daniel Martins de Barros, coordenador do Núcleo de Psiquiatria Forense do Hospital das Clínicas.
Entre os favoráveis à medida, há os que reconhecem essa diferença cerebral e defendem mudanças na PEC 171, como o promotor de justiça da infância e juventude da capital paulista Fábio Bueno. Ele acredita que a redução da maioridade é possível se houver também a diminuição de um terço da pena devido à imaturidade dos jovens e se eles forem colocados em estabelecimentos especiais para não se misturarem com presos experientes. “Hoje, os benefícios que um jovem tem com o crime são infinitamente superiores ao preço que ele vai pagar caso seja pego. Quando você tem uma punição maior, ela tem um caráter de intimidação para esse adolescente e outros que estão ao redor”, disse Bueno a GALILEU.
No entanto, não há provas de que a redução intimidaria menores de idade. Ao contrário. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), contrária à medida, isso só agravaria o problema da violência no país. “Encarcerar jovens de 16 e 17 anos em presídios superlotados será expô-los à influência direta de facções do crime organizado”, disse a ONU em um comunicado. “A pergunta é: isso resolve o problema da criminalidade? Não resolve, e temos exemplos muito claros no Brasil. Passados 25 anos da promulgação da lei de crimes hediondos no país, temos a terceira população carcerária do mundo. Alguém sente que a violência diminuiu?”, pondera Bruna Rigo Leopoldi Ribeiro Nunes, defensora pública e coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado da Infância e Juventude de São Paulo. “Não é com o endurecimento de penas que reduzimos a violência. Temos penas duríssimas no código penal, e as pessoas não param de cometer crimes.”
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que os adolescentes têm direito a “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”. Na prática, isso não vale para todos.
No estado de São Paulo, onde está quase a metade do total de menores infratores brasileiros, 67,7% são negros e pardos, e apenas 0,88% cometeu homicídio qualificado. A maioria está internada por roubo (43%) ou tráfico de drogas (39%) e não tem Ensino Fundamental completo. Não por acaso, é justo essa parcela da população a maior vítima da violência no país. De acordo com a Anistia Internacional, mais da metade dos homicídios tem como alvo jovens entre 15 e 29 anos, e 77% deles são negros. “Dizem que o Brasil é o país da impunidade, mas ela não recai sobre jovens negros da periferia”, disse o vice-presidente do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio Lima, em um debate do Ministério Público sobre a PEC 171.
O que parece faltar, na verdade, é um debate sério sobre o acesso desses jovens a saúde e educação. “Antes de pensar na redução da maioridade penal, temos de pensar que o Estado brasileiro está longe de proporcionar a essa parcela da população o que a Constituição determina — serviços de educação, saúde, saneamento básico, moradia. Não garantimos a escola e queremos responsabilizar penalmente os menores de 18 anos, é uma hipocrisia”, disse a GALILEU Julita Lemgruber, cientista social e ex-diretora-geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro. A única boa solução para a criminalidade juvenil apontada de forma unânime por todos os entrevistados é o investimento pesado em políticas públicas de educação, saúde e cultura. Mas não é essa a discussão calorosa do Congresso.
QUEM SÃO ELES?
Internos têm baixa escolaridade e são da periferia
> 23 mil é o número de adolescentes internados em centros socioeducativos, ou 0,08% do total de jovens brasileiros
> 88 mil adolescentes cometeram delitos mas estão em liberdade assistida ou só prestam serviços comunitários
> 75% fazem uso de entorpecentes
> 86% não completaram o Ensino Fundamental
> 40% foram presos por roubo
> 23,4% foram condenados por tráfico
> 8,8% cometeram homicídio
> 38% foi o aumento de apreensão de adolescentes nos últimos cinco anos
> 4 em cada 10 jovens infratores vão cometer novos crimes
JUSTIÇA À BRASILEIRA
Há problemas mais graves que a maioridade penal
> 4º lugar é a posição do Brasil em um ranking da Organização Mundial da Saúde com 99 países sobre mortalidade de jovens entre 15 e 19 anos
> 13 homicídios para cada 100 mil é a taxa de violência contra jovens registrada no Brasil
> Apenas 10 em cada 100 crimes são solucionados pela polícia
NA CONTRAMÃO
Segundo a Unicef, 78% dos países consideram a maioridade penal aos 18
ALEMANHA > Entre 14 e 18 anos, os presos são enviados a uma “justiça juvenil”, com sentenças diferentes e cadeias reservadas. O país determinou que um adulto entre 18 e 21 anos também pode ir para a “justiça juvenil”
JAPÃO > No Japão, a maioridade penal é aos 20 anos. Adolescentes entre 14 e 20 anos são enviados a uma “corte infantil”. Crimes mais sérios são mandados a promotores, que podem pedir uma pena mais severa
ESCANDINÁVIA > Em toda a região, a idade de responsabilidade criminal é 15 anos, mas os adolescentes de até 18 anos são enviados a um sistema de justiça baseado em serviços sociais. Encarceramento só vale como último recurso
REINO UNIDO > Embora a idade mínima de responsabilidade penal seja 10 anos, a privação de liberdade só é permitida a partir dos 15. O tratamento é diferente do reservado a adultos, e jovens de até 18 anos são enviados a centros especiais de aprisionamento
FRANÇA > Entre 13 e 18 anos, os jovens têm uma presunção relativa de irresponsabilidade penal. Até os 16, há uma diminuição obrigatória da pena, e até os 18 é uma decisão do juiz
COM A PALAVRA, OS LEITORES
Perguntamos aos fãs de Galileu no Facebook o que eles acham da PEC 171. Confira as melhores respostas
A FAVOR:
Como medida a curto prazo, sou a favor. Mas, como dizia Pitágoras , “educai as crianças, e não será preciso punir os homens”.
— Thales Bruno
Hoje em dia os adolescentes amadurecem mais rapidamente, estão cientes do que é certo e do que é errado. A redução da maioridade penal não é a solução ideal, mas é a mais urgente e fácil de ser aplicada.
— Alex Nery
A favor! Cresci em um bairro pobre e que hoje é muito violento. Vi crianças sendo aliciadas e usadas no tráfico e em outros crimes horríveis. Depois de adultas, essas ex-crianças eram capazes dos crimes mais cruéis, e também utilizavam crianças. Certas da impunidade, darão continuidade ao ciclo.
— Mariane Fernandes Machado
CONTRA:
Maioridade penal é irrelevante quando mais de 90% dos assassinatos no Brasil ficam sem solução. O Estado é ineficiente na investigação de crimes graves. E reduzir ou não a maioridade penal não vai mudar isso.
— Wellton Enishi
A redução da maioridade penal é mais uma lei que só serve para inflar o direito penal e dar à sociedade uma sensação de que “agora vai ficar tudo bem”. O famoso direito penal simbólico.
— Danielle A. Camisão
Redução da maioridade penal é o reflexo do momento por que passa o nosso sistema político, utilizando-se da opinião pública pra instituir uma lei que tira do Estado a responsabilidade de educar a juventude e a joga nos braços do tráfico.
— Vinicius Neves
REVISTA GALILEU
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