sábado, 20 de fevereiro de 2016

Crônica do Dia - Quarta - feira de Cinzas é tempo de ponto e parágrafo



Eis a Quarta de Cinzas. Coda do corpo, crepúsculo dos deuses e deusas, encerramento dos dias da lira do delírio. Somos terminados e renovados nas cinzas, pagãos-sagrados, espectadores chapados de notas dez pra baterias durante a tarde. Em um país no qual o carnaval não é desperdício de tempo e sim reinvenção de vidas, Quarta-feira de Cinzas é tempo de ponto e parágrafo — isso, caso seu carnaval tenha que acabar hoje. Eis um dia em que se filosofa sobre o destino seu e do mundo. E, ao contrário do que pensam por aí, em que contemplamos abismos.


Parece que, ainda, não entenderam os brasileiros. Sim, o zika, a crise, o pânico, a violência, o calor, gente, mas como pode sambar e cantar e se purpurinar e se perder e se agarrar, gargalhar, transloucar, como podem estar aí, seminus, suados, extasiados, e tudo ruindo, o buraco, o abismo? Bem, talvez seja bom sempre lembrarmos de Paulo, personagem de Glauber Rocha interpretado magistralmente por Jardel Filho em “Terra em transe” e sair gritando entre plumas pelos blocos: “O abismo? O abismo está aí, aberto. Todos nós marchamos para ele!” (ecos de Glauce Rocha gritando ao fundo “a culpa não é do povo, a culpa não é do povo...”).

Vinicius de Moraes foi autor ao menos de duas letras em que os quarenta dias antes da Páscoa são evocados. Em “A felicidade”, parceria com Tom Jobim, o precipício fica no ar, porém em uma clave romântica e pungente. A felicidade em jogo na canção é a do pobre, aquele que vive o abismo diariamente e que sim, faz da festa momento necessário da vida. Quem conhece o carnaval sabe que ali não se desperdiça nenhum segundo na folia da rua, da quadra e da avenida. Na letra do poeta, sua preocupação: a felicidade do pobre parece a grande ilusão do carnaval. O trabalho cotidiano e repetitivo é compensado por apenas alguns parcos dias de folia, por “um momento de sonho pra fazer a fantasia de rei ou de pirata ou jardineira”. E eis que hoje chega para nos lembrar que tudo não passa de sonho fugaz. Tudo se acaba na quarta-feira.

Já com Carlos Lyra, Vinicius faz uma homenagem ao dia de hoje em sua “Marcha da Quarta-feira de Cinzas”. Lá, a tristeza pelo fim do carnaval não é compensada por uma visada crítica da sociedade e sua desigualdade social. Não se pensa no pobre trabalhador explorado durante o ano e iludido durante a folia. Na “Marcha”, o que ecoa é a resistência. Acabou o carnaval, mas no entanto é preciso cantar e alegrar a cidade. A tristeza, não mais a felicidade, é o que vai se acabar. Vinicius inverte nas letras os polos da agonia de um dia e de um tempo como o de hoje. Se em “A felicidade” o carnaval e sua ilusão são tão frágeis quanto a pluma no vento ou a gota de orvalho, na “marcha” a festa ganha ares épicos-psicodélicos, com “tantas coisas azuis” e “tão grandes promessas de luz” (de LED?). A felicidade agora é a força, não a fraqueza do povo. Ele engole o abismo e canta alto cantigas de amor. A cidade tem motivos para estar alegre? O país? O mundo? E quando teve? E no entanto...

Ainda sobre o tema do dia das Cinzas, Chico Buarque deu sua contribuição em 1965, no seu primeiro compacto da carreira (do outro lado tinha “Pedro Pedreiro”). “Sonho de um carnaval” gravita um pouco no universo melancólico de Vinicius, mas já se desloca para uma tonalidade malandra, abordando a pessoa na rua que se desilude pelos amores fugazes. Sai o componente coletivo-filosófico do poeta e entra a perspectiva individual do folião. Nada que ele conquistasse seria duradouro pois “quarta-feira sempre desce o pano”. E, mesmo assim, mesmo com essa pessoa pronta para enfrentar a dor do esquecimento, ele sabe do abismo. Não se enganem aqueles que condenam o carnaval como alienação pois quando todos partem fantasiados para as ruas, as pessoas deixam em casa “a dor esperando”.

O carnaval é desengano, não engano. É tragédia e poema, não números e medos. A política é dos corpos em profusão, focados, mas não sufocados (saravá MC Bin Laden). No carnaval, diz um jovem Chico Buarque, o que impera é uma vontade de tomar a mão de cada irmão pela cidade. Veja, não é esquecer o outro e o mundo, mas sim reivindicar a chance de se tornar um só na coletividade foliã das ruas e sons. O abismo é remido e reinventado porque é no carnaval que a utopia mais alta se atinge. É só lá dentre os blocos e avenidas que gente triste pode entrar na dança, que gente longe vive na lembrança e que gente grande sabe ser criança.

Mas eis que é quarta e cai o pano. Bate o vazio e o cansaço (menos para os fortes, claro, que ainda estão por aí). E agora, sim, que venha o abismo, a crise, a perplexidade sobre o mundo em parafuso. Afinal, Caetano Veloso também fala de hoje em “Saudosismo” para lembrar que é “Quarta-feira de Cinzas no país e as notas dissonantes se integraram ao som dos imbecis”. Ouviu?

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