quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Resenha - Pai contra mãe - André Marques da Silva

RESENHA ASSIS, Machado de. 

Pai contra mãe. In: seus trinta melhores contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. 

 ANDRÉ MARQUES DA SILVA- UFF 

 Objetivo, surpreendente, crítico/social. Assim é o enredo da narrativa machadiana intitulada Pai contra mãe. O conto, ambientado no Rio de Janeiro, capital do império, é uma narrativa em terceira pessoa cujas personagens engendram um drama social e familiar. Não raro, em alguns trechos mais descritivos, o narrador transita na trajetória de uma crônica histórica, glosando sobre lugares, costumes, perfazendo um retrato social da época, sobretudo, dos resquícios da escravidão. 

O narrador compõe um quadro social do espaço/tempo em que se engendra a narrativa. Aproxima, pois, o leitor do tempo e do espaço por meio de relatos históricos sobre os fatos que envolviam a escravidão, como na descrição das crueldades e tratamento abjetos a que eram submetidos os escravos. Cria um pacto verossímil com o mundo extralinguístico; os fatos narrados se entrecruzam com elementos do real a fim de dar autenticidade ao objeto narrado. 

Da prosa machadiana vislumbram-se não os fortes e os felizes destinados compor hinos de glória; mas a mesquinhez dos homens, a sorte precária de cada indivíduo, os homens aceitam uma e outra como herança inalienável, e fazem dela alimento de sua reflexão cotidiana (BOSI, 2004, p.176). Machado com isso, desvela a consciência nua de um indivíduo fraco, incoerente, inconsistente patológico. 

 A construção do enredo tem como fulcro três personagens desta estirpe; Cândido Neves e Clara; recém-casados e Mônica, a tia, uma senhora dada ao gosto de patuscadas. O sonho do casal, é o ponto emblemático do conto. Filhos, ter ou não os ter? Eis a questão. O casal e fazia planos acerca de constituir prole. A tia, porém, fazia severa objeção, tendo como argumento mor a condição de pobreza em que viviam os três. Clara, por fim, engravidara. O desejo do casal, era inadmissível para a tia, que vê futuro malogrado a uma criança que nascesse naquele ambiente, sem o que comer. Inúmeras vezes, sugere aos pais que ao nascer, conduzam a criança a roda dos enjeitados. O filho nasce, esse fato constitui pedra de toque para o desenvolvimento do conto. 

 Machado com seu ardil criativo instaura em sua trama um verdadeiro palimpsesto1. Sob a aparência de um drama familiar vivido por Cândido Neves e Clara, existe ou jaz um enredo-denúncia, uma crítica pautada na ironia, no deboche contra as estruturas do poder dominante e desigualdade social. Há então no texto duas camadas; uma mais aparente, transparente, a outra permeada pelo discurso, opaco, exigindo que o leitor ultrapasse a linha tênue que separa os dois níveis. Isso, decerto, fere os que apontam Machado como um escritor despretensioso acerca da questão do negro escravo. O fato é que Machado introduz na fala de seus narradores a ambivalência dos sentidos. 

 Em Pai contra mãe, se transpusermos o nível superficial do texto, veremos como Machado dialoga com os fatos sociais, ironizando-os, descortinando as estruturas abjetas do domínio, a sordidez do ser humano. O narrador comenta “nem todos gostavam da escravidão” e “nem todos gostavam de apanhar pancadas”, qual pessoa gostaria de viver à guisa da escravidão, ser posse ou objeto de um senhor, propriedade privada de outrem e, sobretudo, ainda levar algumas pancadas? Decerto, essa ironia, é que “faz apanhar pancadas” dentro do enredo machadiano os críticos que condenam e, por assimilação, o sistema de escravatura.

 Os personagens de Machado neste conto são todos acometidos por uma patologia endógena, são personagens em ruínas, em desconstrução, sem firmeza de caráter; são folhas que ao sabor do vento vão de um lado para outro sem quaisquer consistência e consciência crítica. 

Machado constrói um Cândido que tem certa aversão ao trabalho, para ele, todo ofício é custoso; um sujeito incapaz, inapto. Assim seus “empregos foram deixados pouco depois de obtidos". Então lhe restou o oficio de pegar escravos fugidos, já que este estava destinado aos inaptos para outros trabalhos, como era o seu caso; recebia por isso severas e constantes críticas de Mônica. 

 Clara revela-se um ser em total anulação, sua personalidade é aniquilada por sua tia. Mesmo na iminência de ter-lhe tirado dos braços o filho, não esboçava reação; sempre submissa aos desmandos alheios. Já Mônica, a tia de Clara, velha patusqueira e costureira de oficio ocupa um lugar inarredável na vida do casal. É partícipe dos principais conflitos do enredo; abrigando o casal agir segundo suas diretrizes, participando, compulsivamente de suas decisões e decretando ações. 

 A narrativa instaura conflitos interiores, psicológicos; conduz de forma inelutável os personagens, sobretudo o protagonista, Cândido Neves, a uma aporia2, cuja manifestação desencadeia diversos sentimentos e sens(ações), atordoamento, desorientação. O enredo passa a apontar sempre dois caminhos antitéticos, paradoxais, possíveis ao protagonista: a primeira aporia seria ter ou não o filho, a segunda seria entregar ou não o filho à roda dos enjeitados, a terceira aporia, deriva, pois, da segunda, e se manifesta surpreendente. 

 A terceira aporia está intrinsecamente interligada à segunda em virtude de a permanência do filho em casa depender de recursos financeiros, de dinheiro para mantê-lo. Como procurador de escravos fugitivos, somente uma boa recompensa pela captura poderia salvar o filho do destino malfadado. E há algum tempo estava no encalço de Arminda, uma mulata escrava cujo dono dispendia a boa quantia de cem mil rés de recompensa. No dia mesmo de entregar o filho à roda, quando ainda caminhava em direção a ela com o filho ao colo, encontra a negra que fugira. Deixa o filho aos cuidados de um farmacêutico e persegue-a, cerca-a e segura-a pelos braços; a mulher implora-lhe que não a entregasse a seu senhor, suplicava-o. Aos gritos, revelava: “estou grávida, meu senhor, se vossa senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser”; mesmo com os apelos de Arminda, mesmo estando grávida, mesmo estando ambos: Arminda e Cândido numa aporia ele captura aquela mãe; mesmo na relutância, a negra fugitiva é vencida e levada ela e o filho ao dono. Contudo, à porta de seu senhor, a mãe vem a ter um aborto, perdendo seu filho ali, sangrando diante dos olhos de Cândido. É só nesse instante que se pode depreender a relação pai contra mãe, justificando o nome do conto. 

 A aporia, que em figura retórica, também pode ser definida como uma figura de retórica dizendo respeito aos momentos em que uma personagem dá sinais de indecisão ou dúvida sobre a forma de se expressar ou de agir, dá agora espaço ao gesto resoluto, decidido; entregar a escrava, mesmo sabendo dos riscos de sua gravidez. Não entregar seu filho a roda dos enjeitados era por conseqüência entregar a negra a seu dono; filho por filho; pai contra mãe; aporias semelhantes, sentenças diferentes, era jogo em que só uma das partes se livraria do impasse, daquela tensão e conflito de interesses. 

 Na prosa machadiana o que se nota são ações em personagem; não personagens em ação. Os verdadeiros conflitos e acontecimentos ocorrem dentro do eu-personagem, atuam como sentimentos, sensações que revelam o que há mais de humano e universal na espécie: a contradição, o egoísmo, a mesquinhez que Machado não faz questão de escondê-los, sobretudo, quando há conflito de interesses.

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