Uma amiga muito querida me enviou uma mensagem com raiva, com tristeza, com angústia. A história era a seguinte. Minha amiga é uma ótima profissional, mãe de um filho pequeno e trabalha em casa de forma online desde o começo da pandemia. A quantidade de trabalho atual tem sido o triplo do normal. Trabalha virtualmente, trabalha na manutenção de sua casa e trabalha cuidando de seu filho. Tudo ao mesmo tempo, em paralelo, sem distâncias nem direito a descansos. A única coisa que não cabe nessa vida multitarefa imposta para a minha amiga é cuidar dela própria.
Acontece que o chefe dela, com a empatia de um mosquito, havia lhe “sugerido” que podia trabalhar para além de suas horas designadas, porque “estava em casa” e não perdia tempo em deslocamentos e outras formas de vida “não produtivas”. Lógico, não? Detalhe: o chefe é homem, branco, com grana e sem filhos sob seus cuidados. O raciocínio é bem simples: você está aí comodamente trabalhando no sofá, qual é o escândalo em trabalhar um pouco mais?
Minha amiga, mulher que admiro, teve um papo reto com o chefe e explicou a situação. Imagino que o chefe tenha pensado que ela era histérica, louca ou exagerada. Mulheres que não escutaram alguma vez na vida esses adjetivos indignos e asquerosos, que o patriarcado nos joga como pedradas, que levantem a mão. Nenhuma, né? Vários estudos elaborados durante a pandemia indicam que as mulheres com filhos pequenos são as principais vítimas do trabalho online. Elas, sempre as mesmas vítimas, aos milhões, silenciosas, esquecidas na maternidade, no machismo, no abuso da lógica do hiperprodutivismo.
A produtividade no mundo tem caído de forma brutal e isso é intolerável. A loucura é tanta que nós mesmos nos cobramos se, no meio a este horror, passamos um dia sem produzir algo mercadologicamente aceitável. Passar o dia descansando, conversando com a família que se confina conosco, cuidando de nossa saúde mental, namorando, fazendo nada, é inconcebível. O fazer nada é inaceitável.
O trabalho virtual me parece ser uma das potenciais “furadas” desta pandemia. Inegavelmente necessário para evitar uma contaminação massiva, temo que ele se torne parte da lógica da produtividade online na vida pós-pandemia: se você trabalha de casa, por que não trabalhar um pouco mais? Por que não ter um salário um pouco menor? Sabemos como esse tipo de história termina, com os mesmos de sempre pagando a conta das crises e os mesmos de sempre ganhando dinheiro com elas. Desesperador.
Começam a pipocar globalmente, além do mais, outras modalidades de capitalismo pandêmico. Inauguram-se em algumas cidades lojas especializadas em produtos Covid. As grifes mais importantes produzem máscaras. Aparentemente uma máscara da Loewe protege mais contra o coronavírus do que uma máscara sem marca. Que coisa curiosa. O bicho é repelido por um desinfetante Gucci mais do que por um comprado no supermercado Extra. Hotéis, restaurantes e outros serviços ao redor do mundo cobram uma inventiva “taxa-Covid”. Espera-se que o cliente pague docilmente, domesticado, submisso, sem perguntar nada, o preço extra por um local e um atendimento “Covid free”. O capitalismo é especialista em precificar o medo e transformá-lo em mercadoria. E o medo agora é planetário, imaginem a oportunidade. O capitalismo se constrói na absoluta certeza de que os consumidores somos imbecis irremediáveis. Talvez sejamos mesmo.
A doença e a morte são oportunidades de ouro para o capital. A gente enterra nossos mortos, aliás, nem enterrar nossos mortos podemos em meio à pandemia, e o sistema pensa em como lucrar com o horror. É impressionante como o capitalismo sobrevive a tudo e sempre parece sair mais forte a cada crise, a cada abalo, com uma capacidade de metamorfose que deixa qualquer gênio de queixo caído. Confesso que me dá um desânimo gigantesco quando vejo que tudo é mercado, tudo é preço, tudo é produção. Nem ficar doente se pode. Nem morrer pode.
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