O caso do menininho Miguel, filho da empregada doméstica Mirtes, revela o horror da injustiça de classes no Brasil. E no seu crime, o costume em vigor de morte aos negros entre brasileiros.
Não exagero. Não é possível exagero diante da criança negra que foi desprezada para cair do nono andar até o chão. Dessa morte não podemos nem falar em tragédia, tamanha é a vulgarização de como se anula a vida negra, das favelas no Brasil onde são caçadas, às domésticas que trabalham e servem sob relações “amigáveis”, e portanto falsas. O caso de Miguel Otávio e Mirtes Renata, filho e mãe, é um modelo de crime que não se pune, crime didático antes do sangue do menino, durante e depois.
Na primeira lição, vemos a confortável felicidade das relações entre patrões e empregadas domésticas. Devo dizer, a felicidade confortável de patrões que a traduzem para a felicidade das suas empregadas. “Não têm do reclamar. Dou tudo a elas”, chegam a falar. “Aqui em casa, empregada é pessoa da família”, sem vergonha se gabam. O curioso é que eles, nessas bondosas falas, são quase sinceros. Eles querem dizer, sem a ousadia da expressão, que para negrinhas elas têm mais do recebem por aí, de outros cruéis de caricatura. E, de fato, em suas casas as empregadas comem – “e como comem!”, observam. Elas comem feito animais, isso quer dizer, elas têm uma fome secular, que nunca foi satisfeita. As empregadas dormem! Ora, até dormem – “dormem melhor que eu, pobre de mim, pois tenho insônia”. Muito bem. E neste capítulo, nesta lição, vê melhor quem ganhou a visão da experiência do sofrer.
Um motorista de uber já me contou uma vez, assim do nada, como se fosse de repente: “Eu reconheço na rua, só de olhar, quem é e quem não é empregada doméstica”. Mas como assim? perguntei. E ele: “No ponto do ônibus, elas estão sempre de cabelo molhado e com uma sacolinha. Sabe o que é? No fim do dia, tomam banho e levam pra casa os restos do almoço da patroa. Até hoje, não errei uma. Eu sei, porque minha esposa é faxineira”. E seguiu em frente: “Ela é uma explorada! Muitas vezes, de 7 da noite, na hora de largar, a madame chega e pede pra ela aprontar a janta do patrão. Isso quando não vem com umas amigas pra tomar umas. Aí a minha mulher vai de faxineira a cozinheira. Faz tudo pra dondoca”.
No caso de Mirtes Renata Santana de Souza, e da patroa Sari Corte Real, o afeto, a boa amizade merecia até casa de praia. Em Tamandaré, litoral sul de Pernambuco, onde o patrão Sérgio Hacker Corte Real é prefeito. Acompanham a excelência? Isso quis dizer: para fugir do surto do coronavírus no Recife, a patroa foi para a casa na praia e levou as empregadas e filhinho Miguel. Notem como se reproduz a casa-grande dos bons tempos. Os patrões “empregavam” uma família em sua casa: Mirtes, a sua mãe e Miguel. Que receberam, além do afeto, o coronavírus, pois o prefeito adoeceu e se curou. Enquanto isso, as empregadas contaminadas seguiam no trabalho, porque a faxina e a cozinha não podem parar. Madame ia trabalhar como uma negra? Era só o que faltava. E que se dane a civilização!
Segunda lição de sangue. Minutos antes da queda da criança Miguel, madame estava pintando as unhas em casa. Havia ficado com o filhinho da empregada Mirtes, que saíra para a rua com a cadela da patroa. A criança ficou a brincar com a filha da madame. (Lembram dos escravozinhos negros que distraíam os filhos dos senhores de engenho? ) Mas a desgraça de Miguel foi ter amor demais por sua mãe. Quando ela se ausentou, ele se pôs a chorar, a pedir por seu abrigo e colo. Mas por que o menininho, além de amar a mãe, de repente sentiu tanta falta do seu carinho? Só os que sentem e sentiram essa falta saberiam contar. O fato é que o menino, teimoso, rebelde, “cheio de vontades” – como se não fosse filho de negra – incomodou tanto, que outro jeito não teve a patroa a não ser deixá-lo à própria sorte. Azar, azar, azar, azar. Ou seja: quer sua mãe? Vá lá. Boa sorte. Nas imagens do vídeo, a madame aparece levando o condenado a seu destino de menininho negrinho. E volta para as belas unhas. Súbito, um baque, um pequeno estrondo. Ossos quando batem no chão, descidos de boa altura, soam como bombas. Eu já vi o som de um homem que se jogou do alto do Edifício Holiday em Boa Viagem. Mas de um menininho, nunca. Daí que lhe ponho um pequeno estrondo no seu barulho de ossinhos quebrados0.
E vamos então para a terceira lição didática de um crime de classe em Pernambuco. Na primeira entrevista, um dos investigadores, ao ser perguntado se havia pessoas no apartamento onde a mãe da criança trabalhava, ele respondeu um tanto contrariado: “isso vai depender ainda da investigação”. Pergunta simples, resposta que oculta. Vamos esperar o que o chefe vai dizer, seria o melhor entendimento para o que investigador respondeu. Então o caso passou a ser tratado como uma tragédia, uma fatalidade, vale dizer, um destino de menininhos negrinhos que se metem onde não devem brincar. Então vêm as declarações de familiares da vítima de 5 anos, que falam: “no apartamento estavam a patroa e sua manicure”. Ah, bom, diante do clamor, o diabo de rumo inesperado. Havia que se investigar mais, ir até a inimputável família de elite. Então, é verdade, a patroa foi responsabilizada por crime culposo. Quem não é do mundo das leis até acha que crime culposo é o crime de culpa mesmo. Mas não, é um crime menor, pois nele o autor não teve a intenção de matar. Matou sem querer, por um acidente, uma “fatalidade”, como declarou o delegado em entrevista. Então dona Sari pagou uma fiança de 20 mil reais e foi embora.
Mas a justiça das gentes do Brasil exigem mais investigação e menos morte fatal. Em lugar da tristeza e do ar compungido, todos desejam saber: o que declarou a manicure, testemunha dos “esperneios” da criancinha e das palavras da madame, antes de levar Miguel para o seu cadafalso? Se a manicure foi ouvida, o que declarou? Mais; alguma psicóloga foi chamada para entrevistar a filhinha da madame que brincou com o menininho no apartamento minutos antes da queda? São caminhos que poderiam ser trilhados, anteriores à tipificação menor para o crime da patroa, que poderia receber a pena de um crime de dolo eventual, porque ela assumiu o risco de se desfazer de uma criança, jogando-a para a última viagem em um elevador.
E por último e por fim, a quarta e terrível lição. As sucessivas entrevistas de Mirtes Renata Santana de Souza revelam uma progressão de luzes na sua consciência. O que no começo lhe pareceu um acidente trágico, revelou-se depois uma estranheza, quase que de piedade, quando a querida patroa lhe falou que ia ser presa. E Mirtes lhe perguntou: “Como a senhora vai ser presa se não cometeu crime?”. Na pergunta havia uma desconfiança que passava ao longe, mais alta que o nono andar das Torres Gêmeas, de onde Miguel caiu. Mas desconfiança é dor que dá e passa, ainda que deixe umas pistas confusas. Nesse primeiro tempo, Mirtes não quis ver as imagens do último minuto de Miguel no elevador. Mas depois viu, e o que viu lhe causou uma revolta: a madame conduziu o negrinho mais lindo da vida e apertou um andar do elevador. Apertou ou mostrou, o que não diminui o seu crime. E voltou para a sua manicure. Súbito, um pequeno estrondo. Mas não tão súbito, porque era previsível.
20 mil reais por um negrinho foi de graça.
Uraniano Mota
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