Por José de Ribamar Virgolino Barroso*
Faz mais de cem dias que convivemos, de um lado, com a ameaça sanitária da covid-19 e, de outro, com as ofensivas dos donos do poder e do mercado que se aproveitam desse momento para fragilizar nossas resistências. Multiplique-se essa contagem de tempo por 520 — o total de anos transcorridos desde que Pindorama foi tomada de seus habitantes originários e começou a se tornar Brasil — e se poderá ter uma vaga ideia das ameaças que os povos indígenas enfrentam há séculos. Provavelmente, nem assim.
Historiadores e antropólogos apontam, não de hoje, o papel devastador que gripe, pneumonia, varíola, sarampo, parasitas intestinais e um sem-número de outras infecções (sobre as quais os xamãs não tinham conhecimento de cura) tiveram na dizimação de populações indígenas nestas terras. Com o novo coronavírus não é diferente. O número de indígenas contaminados no país já ultrapassou a casa do milhar e a quantidade de mortos se amplia a cada dia. Entre os quilombolas, a situação também é grave e, segundo noticiado pelo portal G1 no último dia 6 de julho, só o Pará concentra 36% dos mais de 2.500 dos moradores de comunidades remanescentes de quilombos que estão com covid-19 no Brasil.
Apesar disso, no último dia 8, o governo de Jair Bolsonaro vetou uma série de medidas destinadas à saúde dos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais durante esta pandemia. Ou talvez a conjunção escolhida aqui não devesse ser concessiva, mas causal. Bolsonaro não vetou as medidas de auxílio “apesar” do cenário devastador, mas “porque” essa devastação faz parte de seu projeto de dominação e exploração predatória: da Amazônia pelos madeireiros e pelos pecuaristas descomprometidos com a preservação do meio ambiente, e do subsolo das terras indígenas — como o próprio presidente já declarou publicamente seu entusiasmo — pelo garimpo.
Os vetos desobrigam o governo de fornecer água potável, materiais de higiene e limpeza, instalação de internet, cestas básicas, sementes, ferramentas agrícolas, bem como de liberar verba emergencial para a saúde dessas populações e de fornecer mais leitos hospitalares e de UTI e equipamentos de ventilação e de oxigenação sanguínea para atender os povos indígenas e quilombolas. Abandoná-los sem qualquer amparo ao novo coronavírus é o equivalente bolsonarista às roupas contaminadas com os vírus da varíola e do sarampo com as quais fazendeiros do século XIX “presenteavam” aldeias para dizimá-las. Nas mãos do governo Bolsonaro e dos grupos que o apoiam, a Covid-19 se transforma em arma biológica para seu projeto de extermínio.
Isso ficou bem claro na fala do ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, naquela famigerada reunião ministerial de 22 de abril, quando defendeu que o governo aproveitasse a “oportunidade” trazida pela pandemia para “passar a boiada” e fazer uma baciada de mudanças nas regras ligadas à proteção ambiental. Em maio deste ano, o desmatamento na Amazônia completou 13 meses consecutivos de aumento em relação aos mesmos meses do ano anterior, conforme dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Só entre 1º de janeiro e 31 de maio, foram registrados alertas de desmatamento em 2.032 km² da Amazônia Legal, o maior valor desde 2015. Por isso mesmo, o Ministério Público Federal (MPF) pediu, também no último dia 6, que a Justiça Federal afaste Ricardo Salles do comando do ministério, sob a acusação de “desestruturação dolosa das estruturas de proteção ao meio ambiente”.
À causa sanitária e à ambiental se soma a educacional. O mesmo descaso com a saúde dos povos da floresta acontece também com relação à educação e, enquanto são atacados pelas mineradoras e pelo agronegócio, permanecem sem perspectivas de apoio de políticas públicas em relação a esses direitos constitucionais básicos. No mês de junho, dezenas de entidades e fóruns educacionais do Pará divulgaram um amplo documento conjunto, em resposta ao Conselho Estadual de Educação, destacando as especificidades da educação desses povos, para os quais o ensino remoto é uma impossibilidade e um absurdo.
O documento denuncia que as resoluções do CEE para a situação atual, para além de meras orientações, “operam ações concretas e diárias com vistas ao retorno das aulas pós-pandemia, nas comunidades indígenas, tradicionais e camponesas, sem correspondência com a realidade e os anseios da comunidade educacional paraense” e, mais especificamente, dessas populações.
“Como é sabido, as comunidades indígenas, quilombolas, tradicionais e camponesas, incluídas entre os seguimentos sociais mais vulneráveis, sofrem as consequências da pandemia de forma muitos mais acentuada, principalmente por não possuir as condições materiais necessárias para a realização do distanciamento social, e em alguns territórios e regiões do Estado, com consequente aumento das contaminações e mortes neste período”, diz o documento. “Razão a mais para reafirmarmos a defesa da vida como imperativo categórico, evitando-se assim que a precarização do trabalho dos educadores seja intensificada com o retorno das atividades escolares nessas comunidades, como em todo o Estado, vez que ausentes as condições de saúde, higiene e segurança para que isso aconteça.”
A pauta ambiental tem enorme apelo internacional e é preciso que a façamos, juntamente com a denúncia de todos os seus desdobramentos, chegar a todos os organismos mundiais competentes. A luta pela preservação da Amazônia e dos povos tradicionais do Brasil é — e precisa ser — uma luta de todo os país e de todo o mundo. O massacre precisa ser evitado. No perspectivismo ameríndio — na visão que a nós chega pelas palavras de Davi Kopenawa, de Ailton Krenak, de Raoni Metuktireos, de Eduardo Viveiros de Castro e de tantas outras vozes —, xamãs fazem sua parte para conter a queda do céu. Mas é preciso que ergamos nossas mãos e ajudemos a sustentá-lo também.
*José de Ribamar Virgolino Barroso é diretor do Sindicato dos Professores do Pará (Sinpro-PA) e coordenador da Secretaria de Finanças da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee)
Revista CartaCapital.
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