Nova tradução para o inglês de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, clássico de Machado de Assis, coloca em evidência internacional o maior nome da literatura brasileira
Um escritor só se torna clássico quando seu nome vira adjetivo; um atributo tão específico que a essência do que ele descreve não pode ser explicado por outra palavra. Pressupõe uma marca tão reconhecidamente universal que passa a ser usada por nós, mortais, para designar um comportamento humano que a gente até sabia que existia, mas que não tinha, até então, criado uma palavra para explicar. É assim com “Kafkiano”, “Maquiavélico”, “Dantesco”. No Brasil, temos “Machadiano”. Reproduzir esse estilo em outro idioma sempre foi o grande desafio dos tradutores de Machado de Assis. Pela repercussão que a nova edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” está recebendo no exterior, podemos dizer que a tradutora Flora Thomson-DeVeaux está saindo vitoriosa.
A nova versão da obra mais icônica da literatura brasileira foi lançada no início de junho nos Estados Unidos pela Penguin Classics. Sua simples publicação por uma editora tão tradicional já imprimiria ao título um status de clássico. Não que “Memórias Póstumas” precisasse disso: nasceu clássico desde que foi publicado em capítulos na Revista Brazileira, em 1880. Quando saiu pela primeira vez em livro, no ano seguinte, já era eterno.
A tradutora e ensaísta Flora Thomson-DeVeaux é americana, mas seu sotaque carioca é mais forte e perceptível que o estrangeiro. É formada em espanhol e português pela Universidade de Princeton e tem doutorado em estudos portugueses e brasileiros pela Brown. A tradução fez parte da sua tese de doutorado, que inclui ainda um extenso estudo crítico sobre Machado. Flora começou a aprender português quase por acaso, em 2009, apenas para acrescentar um idioma à grade curricular em Princeton. Como já falava espanhol, achou que seria fácil se incluísse outra língua latina. “Foi mais difícil do que eu esperava”, lembra, mas seguiu em frente.
Flora credita sua vocação para as línguas à herança musical: a mãe é pianista, a avó era professora de música. O pai é musicólogo; o avô, professor de música medieval. Durante o curso de português foi convidada para traduzir uma biografia de Carmen Miranda. O livro não saiu, mas ela se apaixonou pelo Brasil. Em 2011, veio fazer um intercâmbio de seis meses e, assim que colocou os pés em solo carioca, se apaixonou pela terra que só conhecia pelas palavras. As paisagens que habitavam seus sonhos se materializaram diante de seus olhos, sensação que o clichê nos obriga a descrever como “amor à primeira vista”.
Voltou para os EUA, onde traduziu “Machado de Assis: Por uma Poética de Emulação”, premiado livro de João Cezar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ao se deparar com trechos citados pelo acadêmico e compará-los com as versões americanas, percebeu que as traduções eram corretas, mas não reproduziam o estilo “Machadiano” do original, ou seja, a ironia discreta e cortante, as diversas camadas de complexidade escondidas nos detalhes da narrativa. Passou a traduzir os trechos por conta própria.
O resultado, “Machado de Assis: Toward a Poetics of Emulation” (Por uma Poética da Emulação), foi publicado pela editora da Michigan University em 2015. Quando leu “Memórias Póstumas” pela primeira vez, ficou impressionada com o tom sarcástico e divertido do texto e decidiu que ele seria o objeto de sua tese de doutorado. Cinco anos depois, sua tradução foi publicada pela Penguin Classics e tem recebido uma atenção surpreendente: em menos de 15 dias, as duas primeiras tiragens se esgotaram e o livro já está indo para a terceira edição – a editora não divulga os números de cada edição. “Por mais que eu soubesse que o livro é excelente, não esperava esse sucesso”, afirma a tradutora. “Está indo tudo muito rápido.”
Essa é a quarta tradução do livro de Machado de Assis para o inglês. A primeira saiu em 1952, quando William Grossman lançou Epitaph of a Small Winner (Epitáfio de um Pequeno Vencedor). Pouco depois, em 1955, o inglês Percy Ellis lançou outra versão, Posthumous Reminiscenes of Braz Cubas. A terceira tradução foi feita em 1997 por Gregory Rabassa, renomado tradutor de literatura latino-americana. Ele é o responsável, por exemplo, pela primeira e única tradução de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, para o inglês, e costuma ser creditado como um dos responsáveis pelo sucesso da obra no mercado internacional.
Segundo João Cezar Castro Rocha, as traduções anteriores de “Memórias Póstumas” não haviam sido bem sucedidas na tarefa de manter a complexidade do texto original. “Há uma simplicidade enganosa no estilo de Machado. Seu texto é uma explosão de ambiguidades e exige um tradutor que entenda muito bem não apenas o idioma, mas as camadas de ideias presentes ali”, afirma o professor. “A tradução de Flora é uma façanha porque em vez de aplainar o texto, ela explicou suas opções idiomáticas em notas e no estudo crítico que acompanha a nova versão”, afirma Castro Rocha. “Quando se traduz Flaubert ou Goethe para o inglês, tanto o tradutor quanto o leitor estão preparados para dedicar um esforço suplementar, que é recompensado pela qualidade superior da obra. Se o leitor aceita penetrar na prosa labiríntica de Marcel Proust, ele também pode investir para compreender Machado de Assis.”
Mercado global
Apesar de já ter sido elogiado por nomes como Philip Roth, Susan Sontag, Allen Ginsberg, John Updike e Salman Rushdie, entre outros, Machado nunca foi um best-seller no mercado internacional, como aconteceu com outros escritores latino-americanos como García Márquez e Vargas Llosa. “Esse boom da literatura latino-americana que começou em 1967 com “Cem Anos de Solidão” não foi impulsionado por um único nome, mas por toda uma geração: principalmente García Márquez e Vargas Llosa, mas também Ernesto Sábato, Juan Rulfo, Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares. Além disso, havia um interesse global pela situação em Cuba, o mundo tentava compreender o que pensava a América Latina. Não há nada similar no momento, Machado chega ao mercado internacional sozinho.”
Mídia essencial
O escritor Silviano Santiago, autor de “Machado”, obra em que recria os últimos anos da vida de Machado de Assis, acredita que há duas fases da literatura brasileira nos Estados Unidos. A primeira, nos anos 1950, teve foco acadêmico e foi inspirada por ensaios do escritor John Barth e as primeiras traduções de “Memórias Póstumas”, por Grossman, e “Dom Casmurro”, pela crítica Helen Caldwell. A americana foi além, publicando um estudo que se tornou famoso entre os intelectuais pela analogia entre os personagens de Machado e a trama de “Otelo”, de Shakespeare. A segunda fase, segundo Santiago, é mais midiática e teve início com “Clarice”, biografia do americano Benjamin Moser sobre a escritora Clarice Lispector, lançada nos EUA em 2009. O livro ganhou destaque e entrou para a lista de melhores lançamentos do ano do jornal “The New York Times”. Em 2020, além de “Memórias Póstumas”, a literatura brasileira chama a atenção da mídia graças à nova tradução de “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, feita pela professora Padma Viswanathan.
“Se a primeira fase foi a do conhecimento, agora temos a fase da divulgação”, afirma Santiago, que teve uma respeitável carreira acadêmica nos Estados Unidos como professor visitante em universidades como Stanford, Princeton e Yale. “A cobertura da imprensa é fundamental. A nova tradução de “Memórias Póstumas” recebeu grande destaque na New Yorker, o que é um fator importante para tornar o autor conhecido do grande público”, afirma Santiago. Ele se refere ao prefácio do livro escrito pelo autor americano Dave Eggers — autor de “O Círculo”, entre outros — e publicado na prestigiada revista americana. Santiago, que também é tradutor, aponta o que é necessário para uma versão de Machado ser bem sucedida. “É preciso encontrar uma voz, um estilo literário que consiga reproduzir a singularidade da narrativa em inglês. Como a apresentação de Dave Eggers ressalta o humor e a ironia do livro, é provável que a tradução tenha sido bem sucedida na representação do estilo “machadiano”. A nova edição em inglês vai garantir que, ao contrário de Brás Cubas, Machado de Assis poderá transmitir a milhares de criaturas o legado de sua riqueza. Dessa vez, no mundo inteiro.
“Na primeira vez que li Machado, fiquei chocada”
Insatisfeita com as versões existentes, a tradutora Flora Thomson-DeVeaux recorreu a dicionários do século 19 para recriar o estilo “Machadiano” em inglês
Como você conheceu a obra de Machado de Assis?
Eu estava estudando português em Princeton quando me disseram que eu só iria entender o Brasil depois de ler ‘Memórias Póstumas’. Comprei uma edição no dia seguinte. Já nas primeiras páginas, tive que abaixar o livro e tomar fôlego. Não esperava algo tão divertido e sarcástico. Mesmo tendo uma familiaridade com a literatura do século 19, fiquei chocada.
O que te chocou tanto?
As sacadas do texto são muito impactantes. Tive que voltar a ele várias vezes antes de traduzi-lo. Na primeira leitura, achei Brás Cubas muito espirituoso, engraçado. Depois fui mergulhando na aspereza, na crueldade que, para mim, é o lastro do livro. Aquele olhar da sociedade, a visão da elite carioca. Ao longo do processo de tradução, fui do riso às lágrimas. Uma risada dolorida.
O livro já tinha três traduções para o inglês. Por que fazer uma quarta?
Comecei a comparar os trechos em português e em inglês e vi que as traduções anteriores não estavam erradas, mas alguns detalhes simplesmente não casavam. Isso me chamou a atenção e me motivou a encarar o desafio. Decidi que não queria traduzir apenas alguns trechos, mas o livro todo.
E por que “Memórias Póstumas”, entre a vasta obra de Machado de Assis?
Eu sabia que seria um grande desafio, mas confesso que a escolha teve um lado afetivo. Me apaixonei pelo livro. Sabia que o processo seria longo e mereceria anos de pesquisa e reflexão. Do mergulho na crítica ‘Machadiana’ ao término do processo de tradução foram cinco anos, de 2014 a 2019.
Como foi o contato para a publicação do livro?
Como eu já trabalhava com traduções, comecei a bater de porta em porta assim que a tese ficou pronta. Fiquei surpresa porque a Penguin Classics topou rapidamente. Os editores acreditaram no projeto.
Contos que a realidade não deixa esquecer
Organizado pelo professor João Cezar de Castro Rocha, a antologia “Contos (Quase) Esquecidos de Machado de Assis” reúne numa bela edição da Filocalia raridades e textos que não estão nas coletâneas populares. São quatro eixos temáticos: Música e Literatura; Política e Escravidão; Desrazão; Filosofia. Como são apresentados em ordem cronológica, é possível acompanhar a evolução do estilo “Machadiano” e de suas opiniões sobre determinados temas. Destaque para “Mariana”, sobre uma escrava apaixonada pelo seu senhor que se suicida ao perceber que o relacionamento não seria aceito pela sociedade. Um conto corajoso que expressava em 1871 uma realidade tão atual que é impossível esquecer.
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