Um garoto negro termina um serviço que lhe havia sido solicitado e, orgulhosamente, garante ter feito “serviço de branco”. Várias moças respondem a anúncio para secretária; algumas perguntam se podem ser entrevistadas, “mesmo sendo negras”. Ser negro ou mulato e caminhar pela cidade é considerado “atitude suspeita” por muitos policiais. Como dizia um conhecido ― para meu horror e indiferença dos demais participantes da conversa: “Não tenho nada contra o negro ou o nordestino, desde que saiba o seu lugar”. E esse lugar, claro, é posição subalterna na sociedade.
Numa sociedade competitiva como a nossa o ato de etiquetar o outro como diferente e inferior tem por função definir-nos, por comparação, como superiores. Atribuir características negativas aos que nos cercam significa ressaltar as nossas qualidades, reais ou imaginárias. Quando passamos da ideia à ação, isto é, quando não apenas dizemos que o outro é inferior, mas agimos como se de fato fosse, estamos discriminando as pessoas e os grupos por conta de uma característica que atribuímos a eles.
De uma forma mais precisa podemos dizer que o discurso preconceituoso procura enquadrar as diferentes minorias, a partir de um prejulgamento decorrente de generalização não demonstrada. Mas isso não importa a pessoa preconceituosa. Afirmações do tipo “os portugueses são burros”, “os italianos são grossos”, “os árabes, desonestos”, “os judeus, sovinas”, “os negros, inferiores”, “os nordestinos’ atrasados”, e assim por diante, têm a função de contrapor o autor da afirmativa como a negação, o oposto das características atribuídas ao membro da minoria. Assim, o preconceituoso, não sendo português, considera-se inteligente; não sendo italiano, acredita-se fino; não sendo árabe, julga-se honesto; não sendo judeu, se crê generoso. É convicto de sua superioridade racial, por não ser negro e de sua superioridade cultural, por não ser nordestino.
É importante notar que, a partir de uma generalização, o preconceito enquadra toda uma minoria. Assim, por exemplo, “todos” os negros seriam inferiores, não só alguns. A inferioridade passaria a ser uma característica “racial”, inerente a todos os negros. E se o preconceito conhece um negro que, a seu juízo, não é inferior, acaba reconhecendo que aquele, especificamente, é igual “apesar de negro”, ou seja, uma exceção que justifica a regra. E o preconceito é tão forte que acaba assimilado pela própria vítima. É o caso do garoto que garantiu ter feito “serviço de branco”. Ou do imigrante que nega a sua origem. Ou, ainda, da mulher que reconhece sua “inferioridade”.
Quando se fala de minorias tem sempre um gaiato que diz que as minorias são minorias, pois se somarmos as mulheres aos negros, aos migrantes e aos outros já teríamos uma ampla maioria. Teríamos, sim, se estivéssemos falando de matemática e não de preconceito. Por isso é que dizemos que o preconceito é de uma irracionalidade irracional, por mais paradoxal que a formulação pareça. É evidente que o total de pessoas atingidas pelo preconceito constitui a maioria numérica da sociedade, principalmente se nela incluirmos as mulheres, ainda fruto de preconceitos machistas elementares (“mulher não sabe dirigir”, “mulher é objeto” são apenas alguns dos mais correntes). Se somarmos as mulheres aos negros, nordestinos e descendentes de algumas nacionalidades já mencionadas, as “minorias” se transformarão em esmagadora maioria.
Seria, pois, errado falar em minorias? Não, uma vez que o conceito de minoria é ideológico, socialmente elaborado e não aritmeticamente constituído. Isto quer dizer que o negro de que se fala não é o negro concreto, palpável, mas aquele que está na cabeça do preconceituoso. E isto tem raízes históricas profundas.
O olhar branco e majoritário que lançamos pela História não perdoa nada. Apresentamo-nos como povo branco que no máximo recebeu algumas “contribuições” de outras raças como ensina ainda boa parte de nossos manuais escolares. Somos, na visão reproduzida em muitas escolas, brancos de cultura branca, que absorveram aspectos pitorescos das outras raças, como temperos, crendices e alguns ritmos. Olhamos os negros com rancor, como se eles tivessem escolhido vir para cá “manchar a sociedade branca”. Após escravizá-los, reclamamos de seu caráter submisso. Após esmagá-los de trabalho, por séculos, falamos de sua preguiça. Depois de deixá-los na rua, quando da Abolição, não nos conformamos com sua pobreza. O problema do negro deve ser explicado pela História, nunca pela biologia...
Hoje sabemos que na segunda metade do século XIX houve um grande incremento de revoltas, rebeliões, fugas e assassinatos de feitores e senhores em muitas fazendas, levando um grande número de proprietários a transferir suas residências para as cidades, com medo dos negros escravos. Os arquivos abrigam também inúmeros processos contra negros por suas atitudes com relação aos senhores, incluindo frequentes casos de assassinatos, o que pulveriza a ideia de que os negros aceitaram passivamente sua condição.
Levantes importantes, em diferentes partes do Brasil, têm sido estudados e demonstram que, se é verdade que aqui não se chegou a haver uma revolta geral como no Haiti, não é menos verdade que nos últimos anos de escravidão se vivia um clima de levante iminente e muito medo por parte dos brancos.
Uma das sequelas da escravidão foi ter deixado muito marcada, no Brasil, a separação entre o trabalho braçal e o intelectual. Lembro-me, com tristeza, de reuniões com colegas de universidade numa pequena sala, com cadeiras empoeiradas devido a uma greve dos funcionários de limpeza. Alguns professores, teoricamente defensores dos oprimidos e vencidos, não se dignaram a passar um pano sobre as cadeiras para retirar o pó, preferindo a ficar em pé a sujar a roupa na poeira. Enquanto amaldiçoavam a greve, exaltavam os grevistas de papel, descritos em suas teses cheias de mofo.
O preconceito contra o negro tem várias facetas, e uma delas está justamente voltado a questões ligadas ao trabalho. Será que é razoável usarmos termos como “serviço de negro”, ao nos referirmos a algo mal feito, ou a um trabalho especialmente desvalorizado pela sociedade? Há uma série de outros termos e expressões, extremamente pejorativos, que deveriam ser objeto de nossa atenção, pelo seu caráter altamente ofensivo.
Sempre haverá quem alegue que o negro, de fato, é diferente, que lá está sua cor de pele, algo externo, evidente, marcando acintosamente a diferença. Mas há outras diferenças, também evidentes, que não têm conotações de superioridade ou inferioridade... É só o estudante que está me lendo agora voltar-se a seus colegas e observar o lóbulo de suas orelhas. A maioria tem o lóbulo descolado, solto, mas há sempre alguns que têm o lóbulo preso, colado à face. E se alguém desenvolvesse a teoria segundo a qual estes últimos seriam mais inteligentes do que os primeiros? Parece ridículo, idiota mesmo, não? Mas não há quem acredite que a cor da pele, algo tão superficial e irrelevante quanto o lóbulo da orelha, defina superioridade? Se for possível tirar os sapatos em sala de aula, tentem verificar quantas meninas têm o segundo dedo do pé mais comprido do que o dedão. Vocês podem não acreditar, mas dizia-se que meninas com dedos assim, quando casadas, mandariam nos maridos. Não parece algo muito, mas muito idiota? E não é igualmente idiota acreditar que por ter mais melanina na pele alguém possa ter mais talento para o samba e menos para a política ou administração?
De resto lembro-me sempre do que me ensinou uma antiga professora de antropologia. Segundo ela, o esqueleto de membros de certos grupos de africanos como os zulus, por serem altos, magros e dolicocéfalos (cabeça mais comprida do que redonda), poderiam ser confundidos com o de nórdicos, nunca com o de mediterrâneos, estes geralmente são baixos, encorpados e braquicéfalos (cabeças mais redondas do que compridas). Noutras palavras, abstraindo a cor da pele há mais semelhança entre certos grupos de negros e brancos do que os brancos entre si. Como se vê, estabelecer juízos a partir de algo tão periférico e superficial como a cor da pele não resiste a uma avaliação um pouco mais aprofundada.
Durante a primeira metade do século XX as teorias raciais estavam muito na moda. Com a subida ao poder de Hitler, nos anos 30, foram estimulados os experimentos com vistas a demonstrar as diferenças entre as raças e ― os nazistas esperavam ― a superioridade de uma alegada raça ariana. Sem nenhuma consideração pelas pessoas, os nazistas, fizeram experiências cruéis com seres humanos, dissecados em vida, com a finalidade de provar suas teorias. Não conseguiram encontrar nada que desse sustentação aos seus preconceitos.
Por todas essas razoes, combater a discriminação aos negros (e, por extensão toda e qualquer discriminação ou preconceito) é não apenas uma atitude politicamente correta, mas racionalmente consequente e socialmente aconselhável.
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