quarta-feira, 25 de março de 2020

Artigo de Opinião - A elite que lava as mãos e o vírus do individualismo - Ana Laura Prates



Em 1944, o filósofo Jean Paul Sartre escreveu uma peça de teatro traduzida para o português por “Entre quatro paredes”. Trata-se de três personagens – um homem e duas mulheres, uma delas homossexual –, que estão mortos e se encontram confinados entre quatro paredes sem espelhos, por toda a eternidade. Enquanto a trama se desenrola, ficamos sabendo da vida e dos pecados de cada um, refletido no olhar do outro, ao mesmo tempo em que disputas, rivalidades, ciúme e agressividade tomam conta do cenário, até a conclusão final: “o inferno são os outros”. Em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial, o psicanalista Jacques Lacan escreve um texto sobre o tempo, em um diálogo crítico com o filósofo. Esse texto é construído em torno de uma espécie de charada ou desafio: há três prisioneiros (como na peça de Sartre), mas eles são impessoais em gênero ou qualquer outra característica. O único que sabemos é que estão presos, e que o diretor do presídio oferece a possibilidade de que um deles saia. Ele apresenta aos prisioneiros 5 discos: 3 brancos e 2 pretos. Cola um disco nas costas de cada um e diz: o primeiro que descobrir a cor de seu próprio disco deve apresentar-se para sair, dando uma justificativa convincente para sua resposta (isso quer dizer que não vale chutar) e será libertado. É óbvio, portanto, que cada um dos presos pode ver o disco nas costas dos outros dois, e assim reciprocamente. É a partir daí que se inicia uma série de hipóteses que levará, acreditem, com que os três saiam simultaneamente.

Não vou demonstrar a vocês como se chega a essa solução. Quem está lendo esse texto provavelmente estará de quarentena, e terá tempo suficiente para matar a charada. Poderá, inclusive, fazer uma simulação da situação, para facilitar a compreensão de que a pressa de sair e o modo como os demais prisioneiros reagem serão fatores fundamentais para encontrar a saída. A brincadeira, entretanto, só funciona se houver uma reciprocidade absoluta entre os prisioneiros e a conclusão final é a de que não há saída do inferno, a não ser coletiva. Lacan conclui o seu belo texto dizendo que esse pequeno grupinho de três é uma espécie de fórmula mínima da coletividade, que finalmente aponta para a questão fundamental do que chamamos humanidade: como nos reconhecemos mutuamente como sendo humanos, a não ser pelo outro?

Eis, portanto, o paradoxo que nos aprisiona: o inferno são os outros, mas precisamos uns dos outros para sair do inferno. E estamos vivendo um momento histórico em que mais uma vez essa realidade se apresenta para a humanidade de modo dramático. Aqui no Brasil, ela é  quase uma piada pronta, mas de humor negro: não podemos mais dar as mãos em um momento em que ninguém deveria soltar a mão de ninguém. Enquanto a China vivia uma situação dramática há meses e a Europa começava a perceber que a COVID-19 não era apenas uma gripezinha, muitos jovens brasileiros afirmavam, sem nenhum pudor, que se tratava de uma doença de velhos. Conforme fui entrando em contato com os gráficos de transmissão dessa nova forma de coronavírus, cada vez ficava mais perplexa diante da percepção de que grande parte das pessoas, muitas delas cultas e bem informadas insistiam em discutir o assunto como se se tratasse tão somente de uma questão de saúde individual, de opiniões médicas ou de estatísticas transcendentais a respeito de taxas de mortalidade. Argumentos do tipo “há outras doenças que matam mais” ou “a H1N1 é muito mais letal” ou “é muita histeria coletiva”. Minha perplexidade se devia a dois fatores. O primeiro era a premissa de que os cuidados seriam excessivos, pois caso o sujeito A pegasse o vírus, a “gripe” não seria assim tão forte. Em outras palavras, o sujeito A ainda não tinha entendido que o assunto não era sobre ele não pegar o vírus, mas não passar para os demais. O sujeito A, como só pensa em si mesmo e nos seus, não conseguia entender que ele podia não apresentar nenhum sintoma, ou só uma gripezinha caso pegasse o vírus – graças à sua idade, a sua excelente condição de saúde e seu plano de saúde – mas que ainda assim poderia ser o vetor de contaminação em progressão geométrica, devido à facilidade com a qual ele se transmite, atingindo rapidamente pessoas vulneráveis, sem que houvesse tempo de acolher a todas como se faz necessário. Em síntese: colapso no sistema de saúde como um todo! Isso é um fato na China, na Itália, em Paris, nos EAU e no Brasil. Mas, no Brasil, há muitos agravantes que tampouco foram levados em conta para o sujeito A. E é aí que entra o segundo fator estarrecedor. O sujeito A, oriundo da elite brasileira, que viaja à Europa com frequência, ou convive bem de perto com quem o faz, seguiu normalmente sua vida e sua agenda de compromissos após desembarcar, vindo de regiões nas quais a epidemia já se alastrava. Afinal, além de ser jovem e gozar de boa saúde, a taxa de mortalidade seria apenas de 2%. O sujeito A saiu aos quatro ventos expirando esse argumento ao mesmo tempo em que transmitia seus vírus através de sua saliva, de seu hálito puro e de suas operações mãos limpas. Ele simplesmente lavou as mãos. Em primeiro lugar, como se 2% de mortos fosse pouco, mas deixo essa observação sem comentários. O erro fundamental aqui é supor uma percentagem absoluta, como se ela fosse intrínseca exclusivamente ao vírus em si, e não às características sociais, sanitárias, econômicas, culturais, políticas, etc. das populações atingidas. Como se trata de uma nova doença, nós só conhecemos as estatísticas da China e de países da Europa, regiões com características completamente diferentes das do Brasil.

Os dias foram passando, o vírus também foram passando, e os argumentos de nossos governantes foram se revelando assustadoramente incongruentes. Dizia-se que ainda eram prematuras medidas drásticas de isolamento social, pois a epidemia aqui ainda estava no começo. Como se houvesse, por assim dizer, uma vontade própria na epidemia, como se ela tivesse uma velocidade inerente, e como se o estágio da epidemia fosse indiferente ao comportamento de seus transmissores em potencial. É mais ou menos como se fomentássemos um berçário de Aedes aegypti em plena epidemia de dengue, ao invés de tentar erradicar seus criadouros. No caso, os mosquitos éramos nós, e por isso deveríamos ficar em casa. Logo a seguir, vieram as respostas do sujeito B: “E os que não têm casa…”. Ora, justamente, sujeito B, como você tem casa, deveria ficar em casa, fomentar o mesmo comportamento em seus colegas, funcionários e amigos para não contaminar os que não têm casa. Porque em um país como o Brasil, se você não vai morrer, sujeito B, ou se em sua classe social a mortalidade, à primeira vista, será “só” de 2%, esteja certo de que ela será bem maior entre as classes menos favorecidas e as populações vulneráveis como os indígenas por exemplo.

Com o passar dos dias, e o alerta constante dos epidemiologistas, bem como o agravamento da situação na Europa, algumas fichas foram caindo bem lentamente, muito mais lentamente do que teria sido razoável, já que tivemos a chance, ou diria mesmo, a sorte de nos prepararmos antes, mas nada fizemos. E o que aconteceu a partir de então foi a revelação do outro lado da moeda. Da posição irresponsável e inconsequente da elite à qual pertence o sujeito A, passamos quase que automaticamente à fúria consumista do sujeito B de classe média, brigando por seu direito ao álcool gel e ao papel higiênico. Lembrei-me do dia em que fiquei durante 4 horas com meus filhos pequenos dentro do carro, no trânsito de São Paulo, em 2006, devido a uma ameaça de ataque do PCC. As pessoas subiam pela calçada com o carro, desrespeitavam o sinal, literalmente passavam umas por cima das outras. No caso atual, não seria irrelevante nos perguntarmos: porque papel higiênico? Fica o pedido para outros colegas psicanalistas desenvolverem a relação da mesquinhez com a fase anal, como bem assinalou Freud. Aliás, o fato de que o coronavírus chegou ao Brasil de avião não é um mero detalhe, mas uma metáfora funesta da lógica do extermínio que orienta nossas elites, como se houvesse dois tipos de seres humanos – voltamos a Lacan – aqueles que servem, e aqueles que usufruem. É igualmente bastante emblemática a morte da empregada doméstica que estava servindo os patrões infectados.

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O fato é que na sociedade de consumo e individualista na qual estamos presos, vivemos como se tudo acontecesse por num passe de mágica. O sujeito B come hamburger no Mc como se aquele gosto delicioso – gosto não se discute – não viesse de uma cadeia de produção que envolve desmatamento, tortura animal, exploração de trabalhadores, indústria de ultraprocessados, venenos, etc. O sujeito A se aproxima da porta automática de sua garagem e abre te sésamo, ganha a rua em temperatura agradavelmente condicionada. Não sabemos onde moram os porteiros dos nossos prédios e como eles vivem. Também não sabemos e não queremos saber como o lixo desaparece de nossas lixeiras. E em que conduções e condições nossas domésticas chegam às nossas casas. Mas agora veio o vírus, e os “Aedes” A e B o fez chegar ao Sujeito C – que ao contrario do que disse o ministro – não havia passado as férias em Miami ou na Europa. Ainda não sabemos como ele vai reagir, mas certamente não dirá que é só uma gripezinha e tampouco poderá estocar álcool em gel ou papel higiênico. Mas sabemos as consequências em termos de saúde pública, abastecimento, economia, emprego, educação, laço social. Sinto informar, Sujeito A e B, mas vocês não vão conseguir escapar para Miami ou Lisboa, porque dessa vez, o vírus está em toda parte e os voos foram cancelados!


A COVID-19 escancarou a falência absoluta de um modo de vida que só se sustenta nessa nova forma de escravidão de servidores do deus mercado, sem direitos, sem saúde pública, sem Estado, sem bem estar social, em uma aceleração tal que só pode produzir deixando como resto a segregação, o lixo industrial e a morte de muitos. Há tempos esperávamos por uma catástrofe natural. Ela chegou. Há um corte, um antes e um depois dessa Peste. Não seremos os mesmos quando a vacina e a droga milagrosa finalmente forem testadas pela ciência, e comercializadas pelos laboratórios.  E está em nossas mãos a construção de um novo futuro mais digno para os nossos filhos, onde A, B e C possam reconhecer-se como humanos, e percebam que só há saída pelo coletivo. Até lá, não está mais na hora de “lavar as mãos”. A não ser que seja para uma mão lavar a outra!

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