O guarda da esquina
O caso é conhecido e já entrou para a história política brasileira. Em
13 de dezembro de 1968, o governo Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº
5 e, na reunião ministerial, o único voto contrário foi do vice – presidente
Pedro Aleixo, que alegou, premonitoriamente: “O problema de uma lei assim não o
senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da
esquina.
O episódio da censura a livros em Rondônia é o típico caso de o guarda
da esquina sentir – se autorizado a cometer abusos de autoridade, não mais pelo
AI-5, revogado ainda na ditadura militar com Geisel, mas pelo exemplo do
ministro da Educação e do próprio presidente Jair Bolsonaro.
Não se pode dizer que há uma ordem direta deles para que atitudes desse
tipo sejam tomadas, mas palavras do líder são levadas a sério pelos liderados
mais afoitos ou com menos bom senso.
A mesma coisa aconteceu com o meio ambiente. O ex – presidente do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Ricardo Galvão, em pleno
debate sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, disse que não tinha dúvidas
de que foi a leniência do governo Bolsonaro com o desmatamento que fez com que
ele crescesse no primeiro ano de governo. As críticas de Bolsonaro às ONGs que
defendem a Amazônia também teriam dado respaldo aos grileiros que atuam na
região.
O “guarda” no momento na prefeitura do Rio, bispo Crivella, já censurou
histórias em quadrinhos com beijo bay, alegadamente para proteger nossas
crianças. Quando ainda era próximo politicamente do governo Bolsonaro, o
“guarda” governador de São Paulo João Doria mandou recolher uma cartilha com
material escolar de ciências para alunos do 8º anos do ensino fundamental da
rede estadual.
A cartilha travada de conceitos de sexo biológico, identidade de gênero
e orientação sexual. Também trazia orientações sobre gravidez e doenças
sexualmente transmissíveis. As duas decisões foram revogadas pela Justiça.
O “guarda” no governo
de Rondônia, Coronel Marcos Rocha (PSL), ex – chefe do Centro de Inteligência
da PM do Estado e ex – secretário de Educação de Porto Velho, mandou recolher
dezenas de livros das bibliotecas das escolas públicas, entre eles clássicos da
literatura brasileira como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de
Assis, “Os Sertões” de Euclides da Cunha, e “Macunaíma”, de Mário de Andrade.
Também estava querendo proteger nossas crianças e adolescentes de
“conteúdos inadequados”. Alegadamente, a decisão foi tomada por um técnico sem
a autorização do secretário de Educação, Suamy Lacerda de Abreu. O memorando
incluía 43 livros de autores brasileiros e estrangeiros, que deveriam ser
devolvidos pelas escolas ao Núcleo do Livro Didático da Secretaria estadual da
Educação.
A medida, como não poderia deixar de ser, provocou protestos de
instituições regionais, como a OAB de Rondônia , e nacionais, como a Academia
Brasileira de Letras (ABL), que tem como missão a defesa da cultura nacional.
Eis a nota:
“A Academia Brasileira de Letras vem manifestar publicamente seu repúdio
à censura que atinge, uma vez mais, a literatura e as artes. Trata – se de
gesto deplorável, que desrespeita a Constituição de 1988, ignora a autonomia da
obra de arte e a liberdade de expressão.
A ABL não admite o ódio à
cultura, o preconceito, o autoritarismo e a autossuficiência que embasam a
censura. É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um
índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um
anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual
não faltará a ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas”.
São tantas as críticas do governo, e do próprio Bolsonaro, à cultura,
são tantas as referências ao que denominam esquerdização na literatura, no
cinema, no teatro, tantas denúncias de supostas imoralidades, que os guardas da
esquina estão se sentindo empoderados pelos novos tempos.
Merval Pereira / Jornal O Globo
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