Jair Bolsonaro descobriu quão vulnerável é um tribunal que despreza sua institucionalidade e se deixa governar pelo humor e pelos interesses de seus ministros. Neutralizá-lo é menos trabalhoso do que pensava. Tempos atrás, aventava usar a cartilha autocrática de cooptação de Cortes insubordinadas ao regime (como fizeram Getulio Vargas e a ditadura militar, Chávez na Venezuela, Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia, os Kaczynskis na Polônia etc.): aumentar o número de cadeiras, nomear apologistas, aposentar os irresignados. Foram balões de ensaio sem compromisso. Eduardo Bolsonaro também sugeriu a saída por força bruta: “um soldado e um cabo”, a mais popular alegoria do fim. “Fechar o STF” tornou-se um tema, um tema falado em público. Em pesquisa recente, constatou-se que 38% da população apoia a ideia, em comparação a 14% em 2008.
Se o tribunal não respeita a si mesmo, para que sujar as mãos com as tintas do autoritarismo? Jair percebeu que há um atalho mais silencioso: “Com todo o respeito, mas criminalizar homofobia é uma decisão completamente equivocada. Além de o STF legislar, está aprofundando a luta de classes. Se tem um evangélico lá, pedia vista e sentava em cima por anos”. Basta nomear um ministro. Sozinho, ele será capaz de obstruir a agenda constitucional do país. Essa é a descoberta. “Sentar no processo” por anos a fio é uma técnica de obstrução patenteada pelo STF. Pode ser passiva ou ativa: passiva, quando o relator engaveta o caso e não solta, quando o presidente da Corte engaveta e não pauta, quando um ministro qualquer pede vista e engaveta; ativa, quando o ministro relator toma decisão monocrática e engaveta. Esse é o menu desenvolvido pelo STF. Estará à disposição de qualquer novo ministro.
O que fez Gilmar Mendes no caso de financiamento empresarial de campanha? O que fez Luiz Fux com a manutenção ilegal do auxílio-moradia para juízes? O que faz Rosa Weber com a ação sobre direitos reprodutivos? O que fez Cármen Lúcia com o caso de execução provisória da pena? O que fizeram Lewandowski e Cármen Lúcia com o caso que discutia a instituição do parlamentarismo? O que fez Teori Zavascki, depois Alexandre de Moraes e agora Dias Toffoli com o caso sobre tráfico de drogas? Sentaram no processo e deixaram a democracia aguardando. Não se sentiram constrangidos a dar explicação pública sobre o assunto, mesmo que a Constituição a exija.
A ironia é que será ele, o futuro ministro evangélico que Bolsonaro promete nomear, a fazer o STF comer o pão que o STF amassou.
Um candidato está em campanha para a cadeira. Por suas postagens no Twitter, o juiz Marcelo Bretas mostra senso de oportunidade: “A teoria da separação de Poderes foi mesmo idealizada por Montesquieu? Veja o que o profeta Isaías escrevera aproximadamente 2.500 anos antes dele: ‘Porque o Senhor é o nosso Juiz; o Senhor é nosso Legislador; o Senhor é o nosso Rei; ele nos salvará’”. Apressado, concluí que ele se contradizia ao invocar, como origem da separação de Poderes, uma passagem bíblica que define seu contrário — a fusão de funções. Mas Bretas está certo, e Montesquieu nada mais fez do que interpretar Isaías: se Deus, e somente Deus, pode reunir as três funções, resta aos homens separá-las. Fundi-las é pretender passar por Deus e cometer o pecado satânico da soberba. Erraram os historiadores da filosofia que precederam Bretas nos últimos 200 anos e pensavam que Montesquieu apenas descrevia a Inglaterra do século XVIII.
Terá sido um recado a Sergio Moro, que, mal versado em conhecimentos bíblicos, enveredou pela missão diabólica de acumular funções na Lava Jato? Ou terá sido um aceno a Bolsonaro, que já se reconheceu ungido de Deus, portanto biblicamente autorizado a ignorar o Congresso e nos salvar da velha política? Para bom entendedor de teologia constitucional, meio tuíte de Bretas basta.
Só evite dar tanta bandeira, Jair. Depois o que vão dizer se seu ministro evangélico comportar-se exatamente como os atuais ministros do STF? Se a Criatura voltar-se contra o Criador, finja que não é com você. Eles, que são ministros brancos, que se entendam.
Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e professor da USP
Revista Época - 26/06/19
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