Uma das obras para crianças mais passadas de geração para geração no Brasil, o disco 'Os Saltimbancos', de origem italiana e trazido ao país por Chico Buarque, completa 40 anos de seu lançamento em tom mais atual do que nunca
Por Cristiane Rogerio - atualizada em 13/03/2019
Era uma vez um cantor e compositor que se tornou pai e notou que não havia muitos discos voltados para a infância. Seu país vivia tempos difíceis e a música era uma das maneiras mais potentes de conversar. Quando soube que um velho amigo italiano havia lançado um disco com canções inspiradas no conto Os Músicos de Bremen, publicado pelos Irmãos Grimm no século 19, viu que seria o momento perfeito para traduzir e adaptar para o seu idioma. E, assim, nasce a obra Os Saltimbancos, com tradução e adaptação de Chico Buarque, música de Luiz Enriquez e textos e letras de Sérgio Bardotti.
Este é só um rápido resumo do surgimento de um dos discos mais emblemáticos produzidos para o público infantil no Brasil ainda hoje, cuja narrativa é mais uma versão do conto que já teve contextos históricos variados, interpretações mais curtas ou detalhadas descrições e qualidades artísticas que revalorizam ou diminuem o original. Mas, acima de tudo, sobrevive ao abordar conflitos e soluções para nossas – eternas – questões humanas. “O conto popular se presta a essas atualizações e releituras. Quando você tem alta qualidade artística, ele se ressignifica com grandeza, como em Os Saltimbancos, com um contexto urbano, em que os personagens enfrentam o poder em um momento no qual não há mais o feudalismo da Alemanha medieval, mas ainda existe a opressão”, diz Susana Ventura, doutora em Letras pela USP, professora, escritora e pesquisadora do livro para a infância. E por que a história ainda nos interessa? “Porque as saídas humanas para os conflitos são as mesmas: a união, a solidariedade, a esperança, a colocação de quem você é no mundo.”
Considerado por críticos o maior compositor popular da história do Brasil, Chico Buarque tinha dez anos de carreira quando lançou Os Saltimbancos. Já era querido e bastante conhecido pelo público, mas também um dos alvos principais da censura coordenada pelo regime militar – que governou o Brasil de 1964 a 1985. O músico teve canções proibidas de serem lançadas e até compactos retirados das lojas, como no caso de “Cálice” e “Apesar de Você”. Foi por conta da repressão que, em 1969, decidiu ir morar na Itália com a esposa – na época, a atriz Marieta Severo –, onde já havia vivido na infância, por conta do trabalho do pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Lá, nasce sua primeira filha, Silvia. De volta ao Brasil, Chico dá continuidade à sua carreira com novos discos, canções para outros intérpretes, além de peças teatrais. Tem mais duas filhas, Helena e Luísa, e começa a dar atenção para a música voltada para as crianças. “O que mais se vê são as mesmas canções infantis com as mesmas personagens da minha infância, e lá se vão anos. Principalmente aquelas figuras do Walt Disney, cantadas numas versões aliás muito boas do Braguinha, o João de Barro. Mas é uma pena, porque são coisas que não têm nada a ver com a criança brasileira”, disse o músico em entrevista de 1976. “O Vinicius é que tem umas canções sensacionais, mas elas são mais conhecidas na Itália do que aqui. Também tenho tentado alguma coisa no gênero, mas ainda não consegui arrebatar minha plateia, minhas três filhas.”
Foi nesse mesmo ano que os italianos Sérgio Bardotti e Luiz Enriquez lançaram o disco I Musicanti, com interpretações de um quarteto vocal muito popular por lá, o I Ricchi e Poveri. Bardotti e Chico já eram amigos e surgiu a ideia de trazer a fábula musical para o Brasil. O esquema foi bastante vantajoso para uma indústria fonográfica que não se preocupava com esse gênero. “Resolvi então fazer esse disco para criança, principalmente porque tinha toda a base gravada”, disse ele, em outra entrevista, em setembro de 1977. “Meu trabalho foi fazer as versões, o trabalho da gravadora foi emprestar o estúdio para os cantores. O disco foi surpreendentemente bem, sucesso de vendas. E é uma história incrível que na Itália não aconteceu”, conta Chico, ao lado de Bardotti, em um encontro para o DVD Chico Buarque Saltimbancos, parte da série de documentários sobre o cantor, feito por Roberto de Oliveira em 2006. O italiano não tem meias palavras sobre a sobrevivência da obra: “Graças a você, ela se salvou”, afirma. “E, no Brasil, ela continua, seja por relançamentos de discos, peças que são montadas, eles pegam o disco e inventam. E crianças de todas as gerações cantam e gostam. É inexplicável”, continua Chico.
O disco foi lançado em março de 1977 e, cinco meses depois, ganhou uma versão para teatro, com Marieta Severo e Grande Othelo no elenco. Em 1981, com a inclusão de novas canções do Chico, a história foi para o cinema com Os Saltimbancos Trapalhões, que acaba de ganhar a sequência Os Saltimbancos Trapalhões: Rumo a Hollywood.
A história inesquecível
Podemos arriscar respostas ao sucesso “inexplicável” a que Chico se refere. No campo da psicanálise e da educação são décadas de estudos que nos impulsionam a pensar a influência da arte na infância. E não só nesse momento de nossa vida: precisamos das artes para nos conhecer, fazer perguntas para o mundo em que vivemos.
Na versão ítalo-brasileira do conto, um jumento, um cachorro, uma galinha e uma gata encontram-se em uma estrada, rumo à cidade. Cada um deles tem um problema: o sábio Jumento (interpretado pelo falecido Magro, do quarteto MPB-4) vive o desprezo dos homens por estar velho demais e cansado; o ingênuo Cachorro (vivido por Ruy, colega de grupo de Magro), também sofre com a exploração dos patrões; a Galinha (Miúcha, cantora e irmã de Chico) não consegue mais botar ovos e pode virar canja e, por fim, junta-se ao grupo a Gata (que, no disco, é a falecida Nara Leão), em crise depois de perder o aconchego de seus donos. Os quatro se unem para melhorar suas vidas, sonhando formar um grupo musical e fazer sucesso na cidade. Ao pararem em uma pousada para buscar abrigo e alimento, dão de cara com seus opressores, decidem enfrentá-los e transformam seus destinos.
O enredo caiu como luvas nas mãos de Chico. Para quem já compunha canções de amor e de leituras sobre um regime de governo antidemocrático, uma história de luta de classes vinha a calhar. Os Músicos de Bremen se populariza no Brasil por causa do disco. Da compilação histórica feita pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, na Alemanha do século 19, apareciam mais tramas com reis, rainhas e lobos, como as de Branca de Neve e Chapeuzinho Vermelho. Se na versão dos Grimm, o quarteto encontrava ladrões em uma casa no meio da estrada, na adaptação ítalo-brasileira, os animais encontram seus patrões. “Eles fazem o encontro ser direto com o sistema, eles enfrentam o próprio opressor”, explica a especialista Susana. E, assim, dá outro sabor de vitória.
Curiosidades
1. Há uma animação de Walt Disney, em 1922, inspirada em Os Músicos de Bremen e outras produções estrangeiras.
2. Bardotti e Enriquez mudaram o sexo de dois animais em Os Saltimbancos – galo para galinha e gato para gata – simplesmente porque o quarteto que interpretava no disco era composto por duas mulheres e dois homens.
3. Como fizeram os músicos italianos, Chico Buarque também levou as filhas e filhos de amigo para participar das gravações e coro.
4. À época da primeira montagem teatral no Rio, o crítico e jornalista Nelson Motta destacou: “Embora criado para crianças, Os Saltimbancos pode perfeitamente se inscrever entre os melhores espetáculos para adultos em cartaz na cidade. Me senti invadido por uma luminosa emoção diante de profunda demonstração de amor e respeito de Chico Buarque para as crianças brasileiras, revelando-lhes numa linguagem simples e direta alguns valores fundamentais para a vida de tantos – adultos e crianças”.
5. O musical ganhou o Troféu Mambembe na Categoria Especial para Chico Buarque pela adaptação da obra, e o Troféu APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de Melhor Espetáculo.
6. O autor do disco, Sérgio Bardotti, conta que, curiosamente, foi justamente outro brasileiro, Vinicius de Moraes, quem deu o empurrãozinho para tudo começar por lá, com os trabalhos dele para crianças como A Casa, que nasceu italiana e só em 1980 foi lançada no Brasil. “Nós queríamos manter aquele espírito um pouco louco das crianças”, conta Bardotti.
Máquinas de pensar
Os Saltimbancos e a história dos Grimm nos remetem a uma série de interpretações – mesmo que escape à intenção inicial dos artistas. “Os contos são como se fossem nossas máquinas de pensar, usados pelas crianças para enfrentar suas angústias, seu processo de crescimento e os enigmas do mundo”, diz Christian Dunker, professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP e autor do livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo, 2015). O psicanalista, que conhece a história alemã desde criança e é fã do disco, chama a atenção para o fato de cada animal representar um momento da vida, nos apontando perspectivas de mundo pelas quais vamos fazendo nossas escolhas. “Estão aspirando tipos diferentes de transformação. Quando, ao final, eles se juntam, a mensagem é que isoladamente o nosso sofrimento é improdutivo”, afirma Dunker. Ao escutar a aflição do outro, o desejo se torna algo para ser realizado em parceria. Se antes o Jumento queria só descansar, agora ele quer encontrar um bom lugar para viver com os seus amigos, em que todos estejam bem.
As crianças captam a mensagem? Não necessariamente, e isso não é um problema. “O mais crucial acontece justamente quando você não entende. Elas não sabem o que elas sabem quando cantam aquela melodia. Isso se chama inconsciente”, diz o psicanalista. Para Paulo Tatit, da dupla Palavra Cantada, e que há mais de 20 anos compõe canções para crianças, isso está bem claro. “Sem dúvida, Os Saltimbancos são uma experiência musical inesquecível por conta do velho e bom casamento perfeito entre letra e melodia. É a força da música que nos pega, a canção irresistível, que dá o diferencial, o que faz ser universal e atemporal. Eu gosto dos Beatles desde os 11 anos, mas eu não entendia nada do que eles estavam falando!”, diz.
Nos termos técnicos, temos, na canção, dois campos que se conectam: o representacional, que conta a história, e o não representacional, próprio da linguagem musical. “Essa conexão é muito rica e dá forma às nossas experiências de afeto”, afirma Dunker. E, conforme crescemos, estabelecemos novas relações, como também acontece com os livros e os filmes. Marilda Castanha, autora e ilustradora de dezenas de livros infantis, lembra que, quando o disco foi lançado, estava na adolescência. Nas suas lembranças, ele entrou como mais um de seu ídolo desde sempre, não havia uma divisão. “Agora que eu estou me dando conta que curti Os Saltimbancos como uma pessoa entrando no mundo adulto e descobrindo que a gente tinha que ter esperança.”
O destino dos animais na história não é aleatório. Bremen é uma cidade-estado, com governo próprio e autônomo, e, na Alemanha medieval, representava o lugar fora do sistema feudal e da isenção dos pedágios. “Um lugar onde os talentos individuais valiam e você conseguiria se manter com o fruto do seu trabalho”, explica a pesquisadora Susana Ventura. Valorizar a identidade de cada um é uma das premissas do Festival Narrativo Feuerspuren, organizado na cidade pela contadora de histórias alemã Julia Klein desde 2007. Com foco nos imigrantes excluídos, o evento é aberto a todos e conta com diversas manifestações culturais e narrações orais de muitos países dentro das lojas, mesquitas, livrarias, bibliotecas. “As histórias são uma maneira de conversar em um lugar onde transitam mais de 70 idiomas”, diz a atriz Letícia Liesenfeld, coordenadora do curso A Arte de Contar Histórias, de A Casa Tombada (SP). Ela já esteve duas vezes por lá para compor uma parte do festival com profissionais estrangeiros que compartilham narrativas de seus países, traduzidas para o alemão. Ao final, o contrário: uma mesma história tem a narração dividida em idiomas diferentes. “Um jeito de mostrar que todos podemos nos entender”, diz.
Com educação e com afeto
Se a escola é um espaço de pensar e produzir conhecimento sobre o mundo a partir também da convivência, para Claudio Thebas, músico, autor de livros, palhaço e professor de criação e expressão da escola Carandá VivaVida (SP), o disco mostra como a memória afetiva pode ser uma ponte entre adulto e criança. “Já era um pré-adolescente, e a lembrança que vem a mim é da minha família, eu escutando com a minha mãe.” Anos depois, Thebas mostrava, pela primeira vez, o disco a um grupo de alunos. “O desafio do educador é criar esse campo afetivo para que aquilo que esteja sendo falado tenha um significado profundo para os dois lados”, afirma. Não quer dizer, no entanto, que ele não tenha sido surpreendido. “Foi junto com aquele grupo que descobri muito mais sobre o disco. A chave da educação, na verdade, é o encontro e Os Saltimbancos nos proporciona esse encontro.”
Talvez seja isso que nos mova a ouvir as músicas em casa e correr para encontrar a peça de teatro na programação da cidade. Nos palcos, houve muitas versões com escolhas artísticas variadas. Eu tenho a lembrança de ver uma interpretação de Bruna Lombardi como a Gata, em 1978. No Rio, a diretora Maria Lúcia Priolli assume uma montagem desde 1982. Em São Paulo, a mais recente, dirigida por Fezu Duarte, estreou em 2008, voltou em cartaz ano passado e recebeu mais de 150 mil pessoas. Quando fez sua versão da peça, o premiado diretor Gabriel Villela incluiu um sotaque brasileiro diferente em cada bicho. “É um espetáculo bem forte, bem político, mas, ao mesmo tempo, é entretenimento e os pais ou irmãos mais velhos têm prazer de levar as crianças”, diz Dib Carneiro Neto, crítico de teatro infantil e colunista da CRESCER.
Uma boa história é sempre um encontro entre um mundo que já existe e um pronto para (re)começar. De mãos dadas, ajudamos nossos filhos a refletir sobre como agimos diante dos conflitos e conquistas e como valorizar quem está ao nosso lado. Foi o que aconteceu com esses adoráveis personagens. Separados, viam suas fraquezas e aceitavam a submissão. Juntos, uniram suas características – um bico, dez unhas, quatro patas, 30 dentes “e o valente dos valentes ainda vai te respeitar”; esperteza, paciência, lealdade, teimosia “e mais dia, menos dia, a lei da selva vai mudar”. No original alemão, sem hierarquia, ao atacar o inimigo, os animais sobem um no outro, imagem consolidada em ilustrações, brinquedos e esculturas muito visitadas na cidade de Bremen até hoje. Um em cima do outro, resistentes como uma montanha, prontos para cantar conosco: “Todos juntos somos fortes, não há nada para temer”.
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