Na última terça, 30, mais um caso de racismo ganhou repercussão, quando uma mãe pintou o filho, uma criança de nove anos como se fosse negra com marcas de chicotadas pelo corpo e colocou correntes, fazendo referência à uma criança escrava, para festa Halloween de uma escola particular. Ela postou orgulhosa: “Quando seu filho absorve o personagem! Vamos abrasileirar esse negócio! #Escravo”.
Acontece que a história da escravidão do Brasil não tem nada a ver com o clima festivo, e escravos não eram personagens para serem absorvidos. A mulher orgulhosa, as pessoas que elogiaram e todos aqueles que não veem nesta situação um grande problema, não compreendem que a história da escravidão do país é um profundo estado de luto transformado em luta por milhares de pessoas negras que foram sequestradas e trazidas em navios negreiros de outras partes do mundo e aqui não apenas tiveram suas vidas objetificadas, como foram suprimidos de qualquer forma de humanidade.
Os efeitos deste longo período são sentidos diariamente: quando uma criança negra tem o cabelo crespo cortado à força, quando PMs confundem o saco de pipoca com drogas na favela, quando uma criança negra ouve que a escola não é o seu lugar”, quando uma mãe “fantasia” o filho de escravo para a festa da escola, ou quando uma mãe recebe um bilhete para cortar ou trançar os cabelos dos seus filhos negros.
A verdade é que precisamos falar sobre racismo e ter consciência que ele não atinge apenas a população negra, mas sim todos brasileiros no seu cotidiano e direitos, uma vez que não se trata apenas de conceitos de natureza estritamente biológicos, mas também de relações sociais, bem como a maneira que foram estruturadas as instituições e os sistemas no Brasil, todos frutos da herança do sistema escravocrata.
O problema é que, embora de extrema relevância, o racismo ainda não está sendo tratado como deveria, é ignorado por muitos no Brasil, especialmente pelos tomadores de decisão. O tema ainda é cercado de dúvidas, silenciamento e pouca visibilidade. Contudo, suas consequências são cada vez fortes, limitando e impedindo o desenvolvimento de crianças e adolescentes.
E afinal, por que pintar uma criança de negra e fazer referências à escravidão é racista? Primeiramente, é importante destacar que quando uma criança ou adolescente age de maneira equivocada e racista, esta conduta é efeito da convivência com pessoas próximas, ou influências e atitudes de pessoas públicas que tenham condutas racistas; afinal, como disse Nelson Mandela, ninguém nasce racista.
Assim, no caso específico, ao pintar a criança com a pele negra e assimilar à escravidão a mãe atingiu uma coletividade indeterminada de indivíduos, praticando, induzindo e discriminando toda a integridade de uma raça, cor e etnia, conforme estabelece a Lei 7.716 de 1989, uma vez que se utilizou da imagem de sofrimento de um grupo como algo banal, origem de um longo período de genocídio em massa da população negra. Vale lembrar que nunca houve qualquer retratação aos sobreviventes ou descentes. Além de tocar numa ferida histórica no nosso país, a ação reforça o estereótipo da população negra.
Portanto, são Inegáveis os impactos do racismo no desenvolvimento humano, uma vez que crianças e adolescentes negros, como já destacamos, frequentemente passam por situações que além de constrangedoras, tiram suas vidas apenas pelo fato de serem negros. O racismo tira um pedaço da infância das crianças negras.
Por fim, o Artigo 227 da Constituição de 1988 estabelece que os direitos de crianças e adolescentes têm prioridade absoluta, e são de responsabilidade da família, do Estado e da sociedade. Nesse contexto, ressalta-se que diariamente crianças e adolescentes negros são vítimas de práticas racistas, e involuntariamente inspirados por adultos, praticam ações racistas. A fim de reduzir essa realidade, apontamos a importância de ambientes familiares, educacionais, instituições e relações saudáveis, sensíveis e acolhedoras para o desenvolvimento humano e social saudável. O que é essencial e urgente para que seja possível garantir, plena e equitativamente, o direito de todas as crianças e todos os adolescentes do Brasil.
*Mayara Silva de Souza é advogada do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana
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