Carlos Diegues
Apesar de a Lei Aurea ter sido promulgada oficialmente há 130 anos, a sombra do escravismo renitente e maldito ainda se manifesta, até hoje, em nosso comportamento. Até 1861, a consciência culpada de nossos homens públicos usava a escravidão nos Estados Unidos, um país que já era exemplo moderno de progresso, como argumento a favor de nosso próprio escravismo.
Depois de Abraham Lincoln e da Guerra Civil entre os estados do Norte e do Sul dos Estados Unidos, isso se tornou impossível. Sobretudo porque, quando os afro-descendentes foram então libertados, o governo americano criou uma “compensação” legal, obrigando-se a dar, a cada liberto, alguns poucos acres de terra e uma mula, para permitir sua existência social a partir da nova condição de homem livre.
No Brasil, quem reivindicou compensação foram os senhores de escravos, protestando contra o governo imperial que os libertava, exigindo indenizações capazes de compensar o fim de sua mão de obra gratuita.
Numa democracia de verdade, se respeita acima de tudo a natureza dos direitos humanos, em suas duas versões. Ninguém é obrigado a fazer o que não quer, a ir onde não quer. Mas também ninguém tem o direito de me dizer o que posso ou não posso fazer. Se eu não estiver incomodando ninguém, vou aonde bem entender.
A pureza infantil, feita de ódio seletivo por instinto que não permite restrições, não serve para a vida democrática. Não serve nem para nenhum tipo de vida adulta. Mesmo que o instinto seja confundido com amor, não será desse jeito que se construirá uma civilização. Nossa grandeza deve estar na confiança de que podemos errar e de nossos erros inventar a compaixão, a solidariedade na trajetória do outro que não se confunde conosco. Que embora seja o outro, deve ser tratado como nós mesmos.
Por ocasião do último Festival de Brasília, aquele em que o filme “Vazante” foi massacrado sob o pretexto de não dar voz aos escravos em cena, Inácio Araujo escreveu essa perfeição em sua coluna na Folha de São Paulo: “Nada mais parece importar nos debates, além de reivindicações especificas: de negros, mulheres, homossexuais, classe média, esquerdistas, etc. Sem julgar o valor ou a necessidade de sua luta, parece que o cinema ali só importa como veículo de propaganda. Voltamos aos anos 1930”.
Tudo o que está sendo aqui dito se aplica, de certo modo, ao episódio que acabamos de assistir no Rio de Janeiro, em pleno 2018. A atriz e cantora Fabiana Cozza, que trabalhara com Dona Ivone Lara e conhecia muito bem a família desse ícone de nossa cultura popular carioca, se candidatou para representá-la numa peça musical. Depois dos mais variados testes, Fabiana foi escolhida, pelos responsáveis pelo espetáculo, para fazer o papel de Dona Ivone Lara.
Ela nem chegou a comemorar. No mesmo dia em que sua escolha foi anunciada, começaram as manifestações de afro-descendentes, seus clubes e grêmios representativos, protestando contra a escolha de Fabiana, sob o pretexto de que ela não era suficientemente negra para representar o papel da sambista. Sendo Fabiana filha de um homem negro e de uma mãe branca, ela nascera mulata (palavra que esses mesmos “combatentes” pretendem extirpar de nossa lingua).
E assim, passamos a viver esse absurdo de existir uma atriz capaz de fazer o papel de Dona Ivone Lara melhor do que qualquer outra, mas não pode ser aceita por não ser retinta. Ou sei lá o que os neo-racistas pretendem nos dizer com esse veto. Sinto muito que Fabiana Cozza tenha aceitado o veto, abandonando o papel e a peça. Sei que não foi por gosto, pois ouvi seu depoimento na internet e ela chorava muito, compungida em sua frustração. Mas acontece que ela aceitou o veto e isso a torna colaboradora dessa má ideia. Ou dessa má ideologia. Pena.
Entre nós, está tão polarizada burramente a luta entre facções em torno dos mesmos temas, sejam grandes ou pequenos, que em futuro próximo talvez estejamos totalmente imobilizados, incapazes de ter coragem de escolher o que considerarmos a verdade, mesmo que ela não o seja.
Stan Lee, o criador do Homem Aranha, usa, nas histórias de seu herói, uma frase de Voltaire que admiro muito: “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades”. Democracia e internet acabam por dar grandes poderes a todos nós. Precisamos aprender a usá-los.
O Globo - 10 de junho de 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário