Relatos sobre o abandono do Museu Nacional deixaram atônitos muitos brasileiros que assistiram pela televisão às labaredas consumirem 200 anos de pesquisa. É impossível não sentir uma certa resignação com a tragédia. Afinal, o Museu Nacional não é o primeiro a ter este destino, e não há indícios de mudanças para que seja o último. A sensação é que naturalizamos a ideia que a cultura não faz parte do projeto de Brasil e, por isso, é normal vê-la destruída. É só acompanhar os comentários de internautas satisfeitos com o incêndio nas redes sociais: "Segue o baile! Se não há vítimas, deixa queimar essa história comunista que criaram", afirmou um entusiasta da tragédia. "Um gasto a menos nos cofres públicos", disse outro.
Mas há de existir algo mais entre o descaso e a conformidade.
A história do Museu Nacional é a história de um projeto civilizatório para o Brasil que fracassou. Embora a discussão sobre o que é "civilização" seja, hoje em dia, alvo de de discussões, a ideia da família real portuguesa ao fugir para o Brasil era muito clara: trazer para os tórridos trópicos as boas maneiras, as artes e a cultura europeia. D. João VI, rei português, para além de todo um aparato político institucional, precisava também da criação de um aparato intelectual que tornasse legítima a Corte portuguesa trasladada para a América do Sul. Assim o Museu Nacional funcionou como uma das formas de validação do Império Português, agora em outras terras.
Criado via decreto de 6 de junho de 1808 com a função de “estimular os estudos de botânica e zoologia”, o museu não tinha acervo e começou com pequena coleção doada pelo próprio João VI e, posteriormente, aumentada por seu neto e imperador, D.Pedro II. Vale lembrar que Pedro (segundo) é um desses personagens peculiares de nossa história. Aclamado imperador aos quinze anos, em 1831, ele teve uma educação baseada nas ideias de seu principal tutor, o Marquês de Itanhaém. Sua educação baseava-se em "uma mistura de iluminismo, humanismo e moralismo", que o tornasse, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho, "um monarca humano, sábio, justo, honesto, constitucional, pacifista, tolerante”.
Era também viajante contumaz para Europa e Estados Unidos. Suas viagens eram marcadas pela visita a instituições culturais, de educação e ciência e a lugares históricos. Algumas das peças que mais chamavam a atenção do Museu Nacional, e que foram destruídas no incêndio, eram as múmias adquiridas em sua visita ao Egito. Ele se correspondeu com Nietzsche, Lewis Carroll, Júlio Verne e Victor Hugo. Foi amigo do astrônomo Camille Flammarion. Esteve nos Estados Unidos, em 1876, quando Alexander Graham Bell lançou o telefone. Se entusiasmou pela invenção e logo a trouxe para o Brasil. Financiou o cientista Louis Pasteur. Apoiou o projeto do empreendedor Irineu Evangelista de Sousa, o Visconde de Mauá, de trazer fazer a Estrada de Ferro Dom Pedro II. Financiou a primeira expedição brasileira à Antártida, e muitos outros projetos que, hoje criticados por seu viés elitista e etnocêntrico, foram, sem dúvida, um grande impulso na construção de um esboço de nação. Mas esse esboço não saiu realmente do papel.
O Museu Nacional era apenas um dos instrumentos civilizatórios do Império. Outras instituições eram a Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico do Rio, a Imprensa Régia (atual Imprensa Nacional), a Casa de Suplicação (que mais tarde se tornaria o Supremo Tribunal Federal), o Banco do Brasil, a Academia Real da Marinha e a Escola Real de Ciências, Artes e Ofício (atual Escola de Belas Artes), além da Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação (mais conhecida como Junta do Comércio).
Não é preciso conhecimento histórico para saber quais dessas instituições cresceram e prosperaram, e quais ficaram relegadas ao esquecimento. Quantas pessoas conhecem o STF ou o Banco do Brasil e quantas sabiam até o incêndio que existia um Museu Nacional no Rio? Qual você consideraria mais importante? Há razões porque as instituições culturais tem sido sendo lentamente apagadas. Com a proclamação da República, em 1889, e com boa parte das forças políticas defendendo ainda a monarquia, muitos republicanos se viram, de certa maneira, impelidos a deixar de lado qualquer ícone ou projeto que lembrassem o império.
Além disso, a ênfase na economia e no progresso material, de maneira desordenada, sobretudo a partir do começo do século XX impeliu o país a relegar e a enxergar o passado como algo velho e sem uso prático, abdicando de sua memória. É nesse contexto que o Brasil se torna o eterno "país do futuro", aquele de Stefan Zweig. Neste futuro, há uma cultura que tem importância, mas essa não é a do acesso para todos. Ela está nos grandes museus da Europa e Estados Unidos, nos mesmos lugares onde D. Pedro II ia para buscar inspirar. "No Brasil, temos a ideia de que a cultura é a 'salvação' para todas as nossas misérias, mas ao mesmo tempo só é digna de acessá-la quem é 'de bem', ou tem algum dinheiro", desabafou nas redes sociais a historiadora Deborah Neves, especialista em patrimônio histórico.
Nesse Brasil, atuar na cultura sequer é considerado trabalho. A rejeição da história como coisa de "esquerdista" está nas redes, mas também no projeto da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, que tenta abolir a disciplina. A história se tornou um supérfluo e também uma maneira de distinção. Não gera riqueza, só prazer. E prazer é só para quem pode manter a vida nababesca de um imperador-menino visitando grandes museus ao redor do mundo.
Fábio Teixeira de Sá é historiador e economista. Regiane Oliveira é historiadora e repórter do EL PAÍS.
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